Nas investigações feitas por Brecht, assume caráter relevante a necessidade de manter uma relação efetiva entre a dramaturgia e a encenação. Contrapondo-se a uma visão tradicional do dramaturgo, afirma: “O ‘universo do poeta’ não deve ser tratado como um mundo fechado e regido por leis próprias” (BRECHT, 1967, p. 227). Assim, contesta a idéia de que o texto dramático é intocável e que o encenador deve submeter-se “respeitosamente” a ele 1.
A “relativização” do texto teatral solicitada por Brecht tem uma importante justificativa: “A ‘palavra do poeta’ só é sagrada enquanto verdadeira. O teatro não está a serviço do poeta, mas da sociedade”(BRECHT, 1967, p. 227). Dessa maneira, a realidade deve ser o referencial da obra e não o texto em si.
Ao assumir essa posição, Brecht rompe com a “dramática aristotélica”, que se sustenta nas interpretações da Poética de Aristóteles2 . Sua crítica mais contundente dirige-se ao conceito de catarse que, ao suscitar emoções como o terror e a piedade, restringe as possibilidades de atitude crítica do espectador.
Em 1931, no texto Notas Sobre a Ópera dos Três Vinténs, Brecht estabelece uma comparação entre a “arte dramática dinâmica, de orientação idealista” e a “arte dramática épica, de orientação materialista”. Enquanto a primeira promove uma “intensa participação emocional do espectador”, a segunda consegue permanecer “indiferente aos investimentos emocionais do espectador” (BRECHT, 1967, p. 74). A princípio, seus escritos enfatizam que a catarse e a identificação produzem o domínio das emoções sobre a racionalidade e, assim, contribuem para manter a passividade do público.
Entretanto, a partir da década de 40, a discussão do tema assume novos contornos: sua crítica dirige-se, principalmente, ao fato de a “dramática aristotélica” restringir-se às emoções provocadas pela identificação. Nas anotações em seu Diário de Trabalho, de 3.8.40, afirma claramente que “a empatia não é a única fonte de emoções de que dispõe a arte” (BRECHT, 1977, p. 141, v. 1).
A fim de assegurar um espaço mais decisivo para a racionalidade crítica do espectador, Brecht desenvolve a “dramaturgia não-aristotélica”. Essa nova forma dramática pretende destacar os aspectos sociais da ação desenvolvida pelo personagem. O enredo, considerado como o “coração da interpretação teatral”, deve evidenciar que os acontecimentos sociais são desencadeados pelo próprio homem: “O drama não-aristotélico não misturaria todos os fatos apresentados para mostrá-los como um destino inexorável, ao qual o ser humano é abandonado indefeso a despeito da beleza e significação de suas reações; pelo contrário, é precisamente esse destino que ele estudaria cuidadosamente, mostrando-o como obra dos homens” (BRECHT, 1967, p. 84 e 85).
Dessa maneira, Brecht critica a “dramática aristotélica” que reduz o desenvolvimento da ação a um mero conflito psicológico, vivido pela figura do herói. Por outro lado, a “dramaturgia não-aristotélica” enfatiza os processos sociais, apresentando os acontecimentos cênicos como “material para discussão e crítica” do público (BRECHT, 1967, p. 213). A “dramaturgia não-aristotélica” contribui para a mudança da atitude do espectador, estimulando sua avaliação e posicionamento em relação à sociedade. Através do efeito de distanciamento, pode suscitar novas emoções, como aquelas provenientes da “produtividade” humana.
Em suas anotações no Diário de Trabalho, de 15.11.40, considera: “apoiando-se na curiosidade e no afã de ajudar poderia provocar-se uma série de emoções equivalentes às conseguidas sob o apoio do temor e da compaixão. evidentemente que existem outras bases para a elaboração de emoções. Em primeiro lugar está a produtividade humana, a mais nobre de todas” (BRECHT, 1977, p. 198, v. 1).
O autor contesta as posições que atribuem à “dramaturgia não-aristotélica” um caráter estritamente racional, em detrimento das emoções. Nas anotações de 17.10.40 mostra que essa perspectiva não encontra respaldo: “o ato de identificação pode produzir-se mesmo que se empreguem elementos racionais; por outro lado, o efeito de distanciamento também pode aplicar-se com elementos puramente emocionais... no teatro aristotélico, a empatia é também mental; o teatro não-aristotélico recorre também à crítica emocional” (BRECHT, 1977, p. 192, v. 1).
Além disso, a “dramática aristotélica” provoca um “efeito imediato”, ao pretender a superação das diferenças sociais, transformando os espectadores em “um todo coletivo, surgido a partir do ‘humano universal’, comum a todo o auditório”. Entretanto, o intuito da “dramaturgia não-aristotélica” é implementar um “efeito mediato”, que mantém a divisão do público e, assim, mostra a permanência dos “antagonismos de classe” (BRECHT, 1957, p. 69).
Algumas mudanças estruturais são indispensáveis para a efetivação de uma “dramaturgia não-aristotélica”. Para tanto, torna-se necessário substituir a continuidade da ação - que provoca um interesse intenso do espectador pelo desenlace do drama - pela articulação independente das cenas. Nesse processo, as “diversas partes da história devem ser cuidadosamente contrapostas, dando-lhes uma estrutura própria, a de uma pequena peça dentro de uma peça” (BRECHT, 1967, p. 214). Ao chamar a atenção para as interligações entre as cenas, a referida dramaturgia fornece as condições para o julgamento crítico do público. Ao invés de promover a evolução contínua do enredo, a “dramaturgia não-aristotélica” pretende que o desenvolvimento da ação seja realizado através de “saltos”, o que permite acentuar suas contradições.
Anatol Rosenfeld, destaca que o uso de cenas independentes entre si e a construção dialética do enredo, estruturado a partir da contraposição de situações, permite assegurar espaço para a reflexão crítica do público: “Depois de cada cena há margem para que o espectador tome distância crítica do ocorrido; essa atitude é facilitada por um aparelho de comentários projetados ou cantados. Ademais, o público não é envolvido pela tensão veemente, linear, de uma ação progressiva, dirigida para a solução final, já que a montagem das cenas tende a ser dialética” (ROSENFELD, 1977, p. 155).
O mesmo autor aponta para outros recursos literários utilizados por Brecht que, assim como os recursos cênicos, permitem a implementação do efeito de distanciamento. Destaca a ironia, a paródia, a sátira e o grotesco como elementos que possibilitam o desmascaramento das situações tomadas como familiares e naturais. Outro aspecto importante na “dramaturgia não-aristotélica” é a presença da comicidade que acentua a sua potencialidade crítica.
Nas palavras de Rosenfeld: “Para podermos rir... é impositivo que não fiquemos muito identificados e nos mantenhamos distanciados em face dos personagens e dos seus desastres” (ROSENFELD, 1985, p. 157). Tais elementos reforçam o caráter narrativo da dramaturgia e permitem a ruptura da ação. Bornheim destaca a presença de cinco características na dramaturgia de Brecht. A primeira, diz respeito à relativização da ação obtida através da parábola, da participação do público e, principalmente, da relação entre a ação cênica e “uma realidade outra”, ou seja, a presença do “universal enquanto refletido no particular” (BORNHEIM, 1992, p. 319).
Como segunda característica, aponta para a ruptura da ação promovida pelo uso das canções. Elas possibilitam que o espectador assuma uma “postura de investigação”. Na seqüência, destaca o distanciamento da ação que se efetiva através da ausência de unidade de tempo e espaço e da presença de duas esferas estéticas: uma dramática e outra épica. De modo que, “o tempo da ação dramática é o presente, o do épico, o passado. Por aí, o épico dispõe da força para resfriar ou distanciar a ação dramática” (BORNHEIM, 1992, p. 322 e 324).
A quarta característica, referida pelo autor, é a dimensão épica da ação cênica, que propicia a tomada de decisões por parte do público. Finalmente, o último aspecto diz respeito ao desenvolvimento da ação e a presença de três formas de conclusão para a ação cênica na dramaturgia brechtiana: a continuidade da ação sem uma solução final; uma solução externa à ação dramática que deixa em aberto a questão da continuidade; uma solução que decorre da própria ação dramática e que impede a continuidade da ação.
Por fim, há que sublinhar que Brecht sempre submeteu sua produção dramatúrgica à autocrítica e à discussão, aspectos que podem ser constatados através do constante exercício de reescrita de seus textos. Cabe ressaltar, ainda, que a montagem cênica é considerada um aspecto imprescindível para a avaliação de sua dramaturgia. Prova disso são as anotações feitas em 30.6.40 no Diário de Trabalho, durante o seu exílio na Finlândia, onde revela sua inquietude diante da impossibilidade de realizar a montagem de seus textos: “é impossível terminar uma peça sem levá-la à cena... como posso comprovar se, por exemplo, a VI cena de A ALMA BOA suporta que li-gung descubra a razão (social) da má índole de seu amigo? só o palco decide sobre as possíveis variantes. excetuando A MÃE e CABEÇAS REDONDAS, desde JOANA nada do que escrevi foi submetido à prova” (BRECHT, 1977, p. 122, v. 1).
As considerações sobre a dramaturgia feitas por Brecht ganham destaque no cenário mundial, na medida em que contribuem para uma nova relação entre o texto e o espetáculo e entre ambos e o público. Jean-Jacques Roubine destaca a relevância da tematização, feita pelo dramaturgo, no sentido da “invenção de um texto plural, cuja heterogeneidade reforça as possibilidades significantes, através da dialética semiológica que introduz” (ROUBINE, 1998, p. 67).
NOTAS:
1Jean-Jacques Roubine propõe uma importante discussão sobre a relação entre o texto e o espetáculo cênico. O autor aponta para o conflito entre duas posições: os partidários da supremacia do texto e os que questionam tal perspectiva. Os primeiros tentam renovar uma tradição que supõe a subordinação de todos os elementos do espetáculo ao texto. Essa tendência - representada, entre outros por Antoine, Stanislavski, Copeau e Vilar - inscreve-se a uma “tradição de sacralização do texto” que tem início no século XVII. O “textocentrismo” considerava que “o texto de teatro veiculava um único sentido, do qual o dramaturgo detinha as chaves. Assim sendo, cabia ao encenador e aos intérpretes a tarefa de mediatizar esse sentido, fazendo com que ele fosse apreendido... da melhor maneira pelo espectador” (ROUBINE, 1998, p. 45 e 48).
Por outro lado, surgem também as primeiras tentativas de questionar a supremacia do texto, a partir das considerações de Craig, Meyerhold, Artaud e Baty, entre outros. Seguindo caminhos diferentes, eles reivindicam uma maior valorização do espetáculo cênico. Alguns, como Craig, pretendem mudar essa tradição, defendendo a supressão do texto e do próprio autor; outros, como Meyerhold, pretendem uma nova articulação entre o texto e o espetáculo; outros ainda, como Artaud, lutam contra a “tirania do texto”, afirmando que ele “possui uma riqueza polissêmica ampliada pela relação insistente entre esse texto e o encenador” (ROUBINE, 1998, p. 63).
Para Roubine, Brecht inscreve-se entre os que não aceitam a contraposição entre texto e espetáculo, ao revelar que “o espetacular não é forçosamente insignificante e que entre a idéia e a imagem cênica não existe incompatibilidade insuperável. Pelo contrário, aos olhos de Brecht uma idéia só é legitimada teatralmente a partir do momento em que ela consegue visualizar-se” (ROUBINE, 1998, p. 68).
2 Brecht utiliza a expressão “dramática aristotélica” para designar toda a arte dramática influenciada pelo conceito de catarse, que produz o processo de identificação. Ele esclarece: “Não consideramos como ponto principal da definição a célebre regra das três unidades; Aristóteles tampouco lhe concedeu especial atenção, como demonstraram as investigações mais recentes. Em nosso parecer, o mais interessante, do ponto de vista social, é o fim que Aristóteles atribui à tragédia: a catarse... Dizemos que uma dramática é aristotélica quando produz essa identificação, utilize ou não regras ministradas por Aristóteles para conseguir o dito efeito. Esse ato psíquico tão particular da identificação ocorre de maneira muito diversa no transcurso dos séculos” (BRECHT, 1973, p. 121, v.1).
BIBLIOGRAFIA:
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo : Nova Cultural, 1991, v. 2, (Os Pensadores).
BENTLEY, Eric. O Dramaturgo como Pensador - Um Estudo da Dramaturgia nos Tempos Modernos. Wagner, Ibsen, Strindberg, Shaw, Pirandello, Sartre e Brecht. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1991.
BRECHT, Bertolt. Brecht - Poemas 1913-1956. Organizado por Paulo C. Souza, 5. ed. São Paulo : Editora 34, 2000.
_______________. El Comprimisso en Literatura y Arte - Historia, Ciencia, Sociedad. Organizado por Werner Hecht, Barcelona : Península, 1973.
_______________. Diários de Brecht. Diários de 1920 a 1922. Anotações Autobiográficas de 1920 a 1954. Organizados por Herta Ramthun, Porto Alegre : L & PM, 1995.
_______________. Diario de Trabajo. Buenos Aires : Nueva Visión, 1977, v. 1 e 2.
_______________. Diario de Trabajo. Buenos Aires : Nueva Visión, 1979, v. 3.
_______________. Escritos Políticos. Caracas : Editorial Tiempo Nuevo, 1970, (Fuegos Cruzados).
_______________. Escritos Sobre Teatro. Buenos Aires : Nueva Visión, 1973, v. 1.
_______________. Escritos Sobre Teatro. Buenos Aires : Nueva Visión, 1970, v. 2 e 3.
_______________. Estudos Sobre Teatro - Para Uma Arte Dramática Não-Aristotélica. Lisboa : Portugália, 1957, (Problemas).
______________ . Teatro Dialético. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1959.
BORNHEIM, Gerd. Brecht - A Estética do Teatro. Rio de Janeiro : Graal, 1992.
_______________. O Sentido e a Máscara. São Paulo : Perspectiva, 1975.
_______________. Teatro: A Cena Dividida. Porto Alegre : L & PM, 1983.
ROSENFELD, Anatol. História da Literatura e do Teatro Alemães. São Paulo : Unicamp/Edusp/Perspectiva, 1993, (Debates).
__________________. O Teatro Épico. São Paulo : Perspectiva, 1985.
__________________. Teatro Moderno. São Paulo : Perspectiva, 1977.
ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. 2. ed. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1998.
VASCONCELOS, Luiz P. Dicionário de Teatro. 2. ed. Porto Alegre : L & PM, 1987.
A “relativização” do texto teatral solicitada por Brecht tem uma importante justificativa: “A ‘palavra do poeta’ só é sagrada enquanto verdadeira. O teatro não está a serviço do poeta, mas da sociedade”(BRECHT, 1967, p. 227). Dessa maneira, a realidade deve ser o referencial da obra e não o texto em si.
Ao assumir essa posição, Brecht rompe com a “dramática aristotélica”, que se sustenta nas interpretações da Poética de Aristóteles2 . Sua crítica mais contundente dirige-se ao conceito de catarse que, ao suscitar emoções como o terror e a piedade, restringe as possibilidades de atitude crítica do espectador.
Em 1931, no texto Notas Sobre a Ópera dos Três Vinténs, Brecht estabelece uma comparação entre a “arte dramática dinâmica, de orientação idealista” e a “arte dramática épica, de orientação materialista”. Enquanto a primeira promove uma “intensa participação emocional do espectador”, a segunda consegue permanecer “indiferente aos investimentos emocionais do espectador” (BRECHT, 1967, p. 74). A princípio, seus escritos enfatizam que a catarse e a identificação produzem o domínio das emoções sobre a racionalidade e, assim, contribuem para manter a passividade do público.
Entretanto, a partir da década de 40, a discussão do tema assume novos contornos: sua crítica dirige-se, principalmente, ao fato de a “dramática aristotélica” restringir-se às emoções provocadas pela identificação. Nas anotações em seu Diário de Trabalho, de 3.8.40, afirma claramente que “a empatia não é a única fonte de emoções de que dispõe a arte” (BRECHT, 1977, p. 141, v. 1).
A fim de assegurar um espaço mais decisivo para a racionalidade crítica do espectador, Brecht desenvolve a “dramaturgia não-aristotélica”. Essa nova forma dramática pretende destacar os aspectos sociais da ação desenvolvida pelo personagem. O enredo, considerado como o “coração da interpretação teatral”, deve evidenciar que os acontecimentos sociais são desencadeados pelo próprio homem: “O drama não-aristotélico não misturaria todos os fatos apresentados para mostrá-los como um destino inexorável, ao qual o ser humano é abandonado indefeso a despeito da beleza e significação de suas reações; pelo contrário, é precisamente esse destino que ele estudaria cuidadosamente, mostrando-o como obra dos homens” (BRECHT, 1967, p. 84 e 85).
Dessa maneira, Brecht critica a “dramática aristotélica” que reduz o desenvolvimento da ação a um mero conflito psicológico, vivido pela figura do herói. Por outro lado, a “dramaturgia não-aristotélica” enfatiza os processos sociais, apresentando os acontecimentos cênicos como “material para discussão e crítica” do público (BRECHT, 1967, p. 213). A “dramaturgia não-aristotélica” contribui para a mudança da atitude do espectador, estimulando sua avaliação e posicionamento em relação à sociedade. Através do efeito de distanciamento, pode suscitar novas emoções, como aquelas provenientes da “produtividade” humana.
Em suas anotações no Diário de Trabalho, de 15.11.40, considera: “apoiando-se na curiosidade e no afã de ajudar poderia provocar-se uma série de emoções equivalentes às conseguidas sob o apoio do temor e da compaixão. evidentemente que existem outras bases para a elaboração de emoções. Em primeiro lugar está a produtividade humana, a mais nobre de todas” (BRECHT, 1977, p. 198, v. 1).
O autor contesta as posições que atribuem à “dramaturgia não-aristotélica” um caráter estritamente racional, em detrimento das emoções. Nas anotações de 17.10.40 mostra que essa perspectiva não encontra respaldo: “o ato de identificação pode produzir-se mesmo que se empreguem elementos racionais; por outro lado, o efeito de distanciamento também pode aplicar-se com elementos puramente emocionais... no teatro aristotélico, a empatia é também mental; o teatro não-aristotélico recorre também à crítica emocional” (BRECHT, 1977, p. 192, v. 1).
Além disso, a “dramática aristotélica” provoca um “efeito imediato”, ao pretender a superação das diferenças sociais, transformando os espectadores em “um todo coletivo, surgido a partir do ‘humano universal’, comum a todo o auditório”. Entretanto, o intuito da “dramaturgia não-aristotélica” é implementar um “efeito mediato”, que mantém a divisão do público e, assim, mostra a permanência dos “antagonismos de classe” (BRECHT, 1957, p. 69).
Algumas mudanças estruturais são indispensáveis para a efetivação de uma “dramaturgia não-aristotélica”. Para tanto, torna-se necessário substituir a continuidade da ação - que provoca um interesse intenso do espectador pelo desenlace do drama - pela articulação independente das cenas. Nesse processo, as “diversas partes da história devem ser cuidadosamente contrapostas, dando-lhes uma estrutura própria, a de uma pequena peça dentro de uma peça” (BRECHT, 1967, p. 214). Ao chamar a atenção para as interligações entre as cenas, a referida dramaturgia fornece as condições para o julgamento crítico do público. Ao invés de promover a evolução contínua do enredo, a “dramaturgia não-aristotélica” pretende que o desenvolvimento da ação seja realizado através de “saltos”, o que permite acentuar suas contradições.
Anatol Rosenfeld, destaca que o uso de cenas independentes entre si e a construção dialética do enredo, estruturado a partir da contraposição de situações, permite assegurar espaço para a reflexão crítica do público: “Depois de cada cena há margem para que o espectador tome distância crítica do ocorrido; essa atitude é facilitada por um aparelho de comentários projetados ou cantados. Ademais, o público não é envolvido pela tensão veemente, linear, de uma ação progressiva, dirigida para a solução final, já que a montagem das cenas tende a ser dialética” (ROSENFELD, 1977, p. 155).
O mesmo autor aponta para outros recursos literários utilizados por Brecht que, assim como os recursos cênicos, permitem a implementação do efeito de distanciamento. Destaca a ironia, a paródia, a sátira e o grotesco como elementos que possibilitam o desmascaramento das situações tomadas como familiares e naturais. Outro aspecto importante na “dramaturgia não-aristotélica” é a presença da comicidade que acentua a sua potencialidade crítica.
Nas palavras de Rosenfeld: “Para podermos rir... é impositivo que não fiquemos muito identificados e nos mantenhamos distanciados em face dos personagens e dos seus desastres” (ROSENFELD, 1985, p. 157). Tais elementos reforçam o caráter narrativo da dramaturgia e permitem a ruptura da ação. Bornheim destaca a presença de cinco características na dramaturgia de Brecht. A primeira, diz respeito à relativização da ação obtida através da parábola, da participação do público e, principalmente, da relação entre a ação cênica e “uma realidade outra”, ou seja, a presença do “universal enquanto refletido no particular” (BORNHEIM, 1992, p. 319).
Como segunda característica, aponta para a ruptura da ação promovida pelo uso das canções. Elas possibilitam que o espectador assuma uma “postura de investigação”. Na seqüência, destaca o distanciamento da ação que se efetiva através da ausência de unidade de tempo e espaço e da presença de duas esferas estéticas: uma dramática e outra épica. De modo que, “o tempo da ação dramática é o presente, o do épico, o passado. Por aí, o épico dispõe da força para resfriar ou distanciar a ação dramática” (BORNHEIM, 1992, p. 322 e 324).
A quarta característica, referida pelo autor, é a dimensão épica da ação cênica, que propicia a tomada de decisões por parte do público. Finalmente, o último aspecto diz respeito ao desenvolvimento da ação e a presença de três formas de conclusão para a ação cênica na dramaturgia brechtiana: a continuidade da ação sem uma solução final; uma solução externa à ação dramática que deixa em aberto a questão da continuidade; uma solução que decorre da própria ação dramática e que impede a continuidade da ação.
Por fim, há que sublinhar que Brecht sempre submeteu sua produção dramatúrgica à autocrítica e à discussão, aspectos que podem ser constatados através do constante exercício de reescrita de seus textos. Cabe ressaltar, ainda, que a montagem cênica é considerada um aspecto imprescindível para a avaliação de sua dramaturgia. Prova disso são as anotações feitas em 30.6.40 no Diário de Trabalho, durante o seu exílio na Finlândia, onde revela sua inquietude diante da impossibilidade de realizar a montagem de seus textos: “é impossível terminar uma peça sem levá-la à cena... como posso comprovar se, por exemplo, a VI cena de A ALMA BOA suporta que li-gung descubra a razão (social) da má índole de seu amigo? só o palco decide sobre as possíveis variantes. excetuando A MÃE e CABEÇAS REDONDAS, desde JOANA nada do que escrevi foi submetido à prova” (BRECHT, 1977, p. 122, v. 1).
As considerações sobre a dramaturgia feitas por Brecht ganham destaque no cenário mundial, na medida em que contribuem para uma nova relação entre o texto e o espetáculo e entre ambos e o público. Jean-Jacques Roubine destaca a relevância da tematização, feita pelo dramaturgo, no sentido da “invenção de um texto plural, cuja heterogeneidade reforça as possibilidades significantes, através da dialética semiológica que introduz” (ROUBINE, 1998, p. 67).
NOTAS:
1Jean-Jacques Roubine propõe uma importante discussão sobre a relação entre o texto e o espetáculo cênico. O autor aponta para o conflito entre duas posições: os partidários da supremacia do texto e os que questionam tal perspectiva. Os primeiros tentam renovar uma tradição que supõe a subordinação de todos os elementos do espetáculo ao texto. Essa tendência - representada, entre outros por Antoine, Stanislavski, Copeau e Vilar - inscreve-se a uma “tradição de sacralização do texto” que tem início no século XVII. O “textocentrismo” considerava que “o texto de teatro veiculava um único sentido, do qual o dramaturgo detinha as chaves. Assim sendo, cabia ao encenador e aos intérpretes a tarefa de mediatizar esse sentido, fazendo com que ele fosse apreendido... da melhor maneira pelo espectador” (ROUBINE, 1998, p. 45 e 48).
Por outro lado, surgem também as primeiras tentativas de questionar a supremacia do texto, a partir das considerações de Craig, Meyerhold, Artaud e Baty, entre outros. Seguindo caminhos diferentes, eles reivindicam uma maior valorização do espetáculo cênico. Alguns, como Craig, pretendem mudar essa tradição, defendendo a supressão do texto e do próprio autor; outros, como Meyerhold, pretendem uma nova articulação entre o texto e o espetáculo; outros ainda, como Artaud, lutam contra a “tirania do texto”, afirmando que ele “possui uma riqueza polissêmica ampliada pela relação insistente entre esse texto e o encenador” (ROUBINE, 1998, p. 63).
Para Roubine, Brecht inscreve-se entre os que não aceitam a contraposição entre texto e espetáculo, ao revelar que “o espetacular não é forçosamente insignificante e que entre a idéia e a imagem cênica não existe incompatibilidade insuperável. Pelo contrário, aos olhos de Brecht uma idéia só é legitimada teatralmente a partir do momento em que ela consegue visualizar-se” (ROUBINE, 1998, p. 68).
2 Brecht utiliza a expressão “dramática aristotélica” para designar toda a arte dramática influenciada pelo conceito de catarse, que produz o processo de identificação. Ele esclarece: “Não consideramos como ponto principal da definição a célebre regra das três unidades; Aristóteles tampouco lhe concedeu especial atenção, como demonstraram as investigações mais recentes. Em nosso parecer, o mais interessante, do ponto de vista social, é o fim que Aristóteles atribui à tragédia: a catarse... Dizemos que uma dramática é aristotélica quando produz essa identificação, utilize ou não regras ministradas por Aristóteles para conseguir o dito efeito. Esse ato psíquico tão particular da identificação ocorre de maneira muito diversa no transcurso dos séculos” (BRECHT, 1973, p. 121, v.1).
Texto de: Maristela Marasca
Janeiro/2014
Janeiro/2014
BIBLIOGRAFIA:
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo : Nova Cultural, 1991, v. 2, (Os Pensadores).
BENTLEY, Eric. O Dramaturgo como Pensador - Um Estudo da Dramaturgia nos Tempos Modernos. Wagner, Ibsen, Strindberg, Shaw, Pirandello, Sartre e Brecht. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1991.
BRECHT, Bertolt. Brecht - Poemas 1913-1956. Organizado por Paulo C. Souza, 5. ed. São Paulo : Editora 34, 2000.
_______________. El Comprimisso en Literatura y Arte - Historia, Ciencia, Sociedad. Organizado por Werner Hecht, Barcelona : Península, 1973.
_______________. Diários de Brecht. Diários de 1920 a 1922. Anotações Autobiográficas de 1920 a 1954. Organizados por Herta Ramthun, Porto Alegre : L & PM, 1995.
_______________. Diario de Trabajo. Buenos Aires : Nueva Visión, 1977, v. 1 e 2.
_______________. Diario de Trabajo. Buenos Aires : Nueva Visión, 1979, v. 3.
_______________. Escritos Políticos. Caracas : Editorial Tiempo Nuevo, 1970, (Fuegos Cruzados).
_______________. Escritos Sobre Teatro. Buenos Aires : Nueva Visión, 1973, v. 1.
_______________. Escritos Sobre Teatro. Buenos Aires : Nueva Visión, 1970, v. 2 e 3.
_______________. Estudos Sobre Teatro - Para Uma Arte Dramática Não-Aristotélica. Lisboa : Portugália, 1957, (Problemas).
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BORNHEIM, Gerd. Brecht - A Estética do Teatro. Rio de Janeiro : Graal, 1992.
_______________. O Sentido e a Máscara. São Paulo : Perspectiva, 1975.
_______________. Teatro: A Cena Dividida. Porto Alegre : L & PM, 1983.
ROSENFELD, Anatol. História da Literatura e do Teatro Alemães. São Paulo : Unicamp/Edusp/Perspectiva, 1993, (Debates).
__________________. O Teatro Épico. São Paulo : Perspectiva, 1985.
__________________. Teatro Moderno. São Paulo : Perspectiva, 1977.
ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. 2. ed. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1998.
VASCONCELOS, Luiz P. Dicionário de Teatro. 2. ed. Porto Alegre : L & PM, 1987.
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