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A pesquisadora Ana Maria Amaral utiliza a expressão Teatro de Formas Animadas para designar um amplo campo da produção teatral, que inclui o teatro de bonecos, o teatro de máscaras e o teatro de objetos. O termo “forma” é usado pela autora para “expressar a materialização de uma ideia” (AMARAL, 1993, pg. 18) e está relacionado à ideia de animação, ou seja, à possibilidade de provocar uma espécie de “ilusão de vida” a algo inanimado. É a relação entre movimento e energia que possibilita essa ilusão:
“O movimento é a base da animação, pois é preciso ter-se sempre a ilusão de uma ação executada durante o ato da apresentação, sem o que não existe ato teatral” (AMARAL, 1993, pg. 18).A animação permite “dar vida” à matéria, por meio da transferência de energia:
“Animação é a relação do movimento com energia. Animar um objeto (máscaras, bonecos, objetos naturais ou funcionais) é imprimir-lhe movimentos dotados de energia... Animar um objeto é carregá-lo de energia(...) Energia é algo que liga a matéria ao espírito, é o que dá ao objeto a ilusão de vida; é também o que nos mantém vivos.” (AMARAL, 1993, pg. 285)É a capacidade de animar o inanimado que possibilita criar personagens, contar histórias. Enfim, animar é o princípio que desencadeia o processo de criação no Teatro de Formas Animadas:
“...no teatro de formas animadas, os objetos materiais inanimados (máscara, boneco, objeto ou simples imagem) ganham vida e passam a representar essências (por extensão da energia vital do ator-manipulador). E, ao se tornarem personagens, isto é, ao serem animados, perdem as características de corpo inerte e adquirem anima, isto é, alma, passando a transmitir conteúdos, substâncias...” (pg. 243)Para Ana Maria Amaral, o Teatro de Formas Animadas é metafórico, pois as formas “são símbolos, não simplesmente colocados em cena, mas dramatizados”. Dessa forma, se estabelece a relação imprescindível entre drama e movimento. Considera assim, que essa forma teatral é “a arte da imagem e do movimento.” (AMARAL, 1993, pg. 245)
I. Teatro de Bonecos
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“’O ator é, sua essência é ser.’ Mas ele não é o personagem, ele apenas representa um papel. ‘O boneco, ao contrário, não é, sua essência é o não-ser.’ ‘Mas ele não interpreta um papel, ele é o personagem o tempo todo.’” (AMARAL, 1993, pg. 73)A relação do ator no teatro de bonecos não é a mesma do ator no teatro em geral. No teatro, o ator cria um personagem que se relaciona diretamente com o público. Já no Teatro de Bonecos, o ator-manipulador transmite sua energia para o boneco e, de uma forma geral, permanece não visível para o público ou, pelo menos, sua presença não é diretamente percebida pelo público. Desse modo, a relação ator-teatro e ator-manipulador é marcada por semelhanças e diferenças. Ambos utilizam sua energia para materializar o personagem, mas utilizam meios diferentes:
“O ator é aquele que no palco é visto, encarna e tem a imagem do personagem. O ator-manipulador é um ator que eventualmente se propõe ou, num determinado espetáculo, tem necessidade de animar e dar vida a personagens inanimados. Enquanto ator-manipulador, nem sempre é visto ou, quando visto, deve manter-se neutro para que o foco não caia sobre si, mas sobre o boneco ou objeto...” (AMARAL, 2002, pg. 22)É preciso compreender as especificidades de cada um para que a atuação possa se dar de forma mais orgânica e completa. No teatro de bonecos, o ator-manipulador usa sua energia para priorizar a atuação do boneco, concebido e construído previamente. Enquanto o ator cria o personagem que vai interpretar a partir das diversas possibilidades que surgem durante o processo de ensaio:
“A força do boneco está em seus próprios limites, na sua incapacidade de poder fazer qualquer coisa que não seja estritamente aquilo para o qual foi feito. E, paralelamente, a fraqueza do ator reside exatamente nas suas enormes possibilidades, pois podendo fazer mil personagens diferentes, ele não é nunca nenhum deles.” (AMARAL, 1993, pg. 73)Para animar um boneco, o ator precisa conhecer a sua estrutura, determinada anteriormente, no processo de construção. A partir do conhecimento da materialidade, o ator busca a expressividade do boneco que manipula:
“...Para animar um boneco o ator deve observá-lo bem antes, captar sua essência e procurar transmiti-la. Para dar vida ao inanimado é preciso ressaltar a matéria, ressaltar essas peculiaridades intrínsecas da materialidade com que o boneco é feito.” (AMARAL, 2002, pg. 80).As características do personagem são criadas a partir da construção do boneco. O ator-manipulador observa e cria as ações, considerando essas características:
“...Antes de o ator-manipulador animar o boneco, ou seja, antes de habitá-lo, no sentido de dar-lhe vida, quem o construiu já o habitou. Já colocou ali um personagem... Na construção de um boneco também são criadas as suas possibilidades técnicas, o que, para sua encenação, é um fator determinante.” (AMARAL, 2002, pg. 80).O ator-manipulador cria movimentos próprios para dar vida ao boneco. O ator se expressa por meio do boneco e, na relação com o público, provoca a ilusão de que o boneco tem vida própria:
“...O público sabe que um boneco não se move por si, que alguém ou algum truque o faz mover-se, mas a consciência de haver um mecanismo não destrói a ilusão. O movimento do boneco em cena produz uma sensação na plateia e essa sensação é importante. A ilusão é conseqüência da sensação que se tem ao ver um objeto mover-se, aparentemente, por si. Não é o movimento que causa a sensação, ela é despertada pela relação que se cria entre o ator, o boneco e o público. A matéria em si não tem vida, mas a partir da emoção que o boneco desperta no ator, cria-se uma reação na plateia que provoca essa ilusão.” (AMARAL, 2002, pg. 58).Um dos aspectos importantes do Teatro de Bonecos é a possibilidade que ele tem de situar-se entre a realidade e a fantasia. Ao provocar a ilusão de vida por meio de um objeto inanimado, o boneco tende a aproximar-se do irreal, da caricatura e do grotesco. Sua linguagem o aproxima do universo fantástico, distanciando-o da concepção tradicional de arte como imitação da natureza. No entanto, cabe ressaltar que a aproximação com o irreal não o afasta definitivamente do real, mas, ao contrário, fortalece uma nova percepção do real. Citando o pensador francês Bernhild Boie, Ana Maria analisa a presença do real e do irreal no universo do boneco:
"Para Boie, à medida que se imita demasiadamente o aspecto exterior do homem, o boneco torna-se falso, deixa-se trair por mecanismos grosseiros. Na medida em que copia, ele não vai além dos clichês. Ao tentar imitar, só engana, pois na cópia mal feita da natureza, fica sempre faltando algo interior, a essência do homem. E o boneco aí é uma imagem negativa. "Mas à medida em que se afasta do real e toma posição oposta ao homem, é quando mais se aproxima dele. Fica cômico e o cômico lhe confere outros significados. No poder de fazer rir, desmascara. Amplia. É uma exageração e desperta instintos poéticos primitivos. Chega assim a alguma essência. O boneco, então, se torna uma imagem positiva." (AMARAL, 1993, pg. 170)No Teatro de Bonecos de caráter popular, desenvolvido em espaços alternativos e marcado pela improvisação, a aproximação entre realidade e irrealidade também está presente:
"No teatro de bonecos popular o tema é o quotidiano do homem, suas lutas em seu meio social, suas ilusões e decepções pessoais. Mas, mesmo tratando do quotidiano, ele se coloca no irreal. Não pretende fazer a cópia da realidade. Os personagens são, em geral, rudemente talhados e confeccionados, seus traços são de um abstrato primitivo sem a preocupação do detalhe. As situações dramáticas dos protagonistas são cômicas, fantasistas ou até absurdas." (AMARAL, 1993, pg. 165-166)Transitar entre o real e o irreal está presente desde os primórdios da história do Teatro de Bonecos. Inicialmente, os bonecos eram percebidos como objetos rituais, capazes de ligar os seres humanos a um universo sagrado ou a outra realidade:
“...o teatro, em sua origem, está ligado ao ritual e a máscara e o teatro de bonecos do Oriente está ligado ao divino, expresso, quase sempre, através do misticismo, do inconsciente ou se apresenta ligado ao transe. “Já o teatro de bonecos do Ocidente se caracteriza por apresentar o homem em sua realidade terrena, nas suas relações, nas suas situações sociais; ou nos aspectos poéticos dessa mesma realidade. É, de certa forma, ainda uma relação com o divino mas este apresentado pelo imperscrutável, pelo não-usual, pela fantasia, pelo grotesco, ou, às vezes, até pelo monstruoso, enfim, pelo não-racional.” (AMARAL, 1993, pg.101)NOTAS:
1 O Teatro de Bonecos é uma expressão artística bastante ampla, compreendendo diversas técnicas diferentes, como: marionete (boneco movido por fios), boneco de luva (também chamado de fantoche), boneco de vara, marote (boneco que com articulação da boca), boneco de gatilho, boneco de manipulação direta (ou à vista). Alguns bonecos também são concebidos a partir da combinação de várias técnicas diferentes.
Texto de: Maristela Marasca
Março/2014
Março/2014
BIBLIOGRAFIA:
AMARAL, Ana Maria. O Ator e Seus Duplos – Máscara, Bonecos, Objetos, Edusp/ Ed. Senac São Paulo, São Paulo – SP, 2002.
________________. Teatro de Formas Animadas, Edusp, São Paulo – SP, 1993.
FO, Dario e RAME, Franca (organizadora). Manual Mínimo do Ator, 3ª ed., Ed. Senac São Paulo, São Paulo – SP, 2004
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II. Máscara
A máscara, outro elemento integrante do Teatro de Formas Animadas, carrega em si a capacidade de disfarçar e simular. Por isso, transforma quem a usa e quem a observa. A máscara também remete a um universo simbólico que está para além do que está aparente ou do que se vê de imediato. Esclarece Ana Maria:
A máscara, outro elemento integrante do Teatro de Formas Animadas, carrega em si a capacidade de disfarçar e simular. Por isso, transforma quem a usa e quem a observa. A máscara também remete a um universo simbólico que está para além do que está aparente ou do que se vê de imediato. Esclarece Ana Maria:
“No teatro, como em toda obra de arte, existe um sentido aparente e outro não-aparente... Atitudes, palavras, ações é o que o homem usa e faz diariamente. Mas na comunicação cotidiana o que acontece permanece no nível do aparente, e no teatro, como na arte, o aparente é apenas simbólico, pois há sempre algo além do que se vê. É a ideia. São conceitos abstratos...” (AMARAL, 1993, pg. 25-26)Para a autora, o uso da máscara no teatro “esconde” o ator, ao mesmo tempo que revela o personagem. Ela também auxilia o ator a perceber o seu entorno de uma maneira não habitual, favorecendo outra percepção/consciência de si e do mundo que está a sua volta:
“A máscara faz com que ele perca a relação habitual que mantém com o mundo a sua volta e lhe dá uma sensação nova de espaço e tempo, favorecendo também a sua introspecção. A máscara ensina o ator a manter uma atenção contínua sobre seu corpo e sobre seu rosto, obriga-o a controlar seus movimentos. O ator é levado a fazer movimentos mais lentos e mais energéticos. Ao mesmo tempo em que provoca uma conscientização do corpo, a máscara favorece a interiorização.” (AMARAL, 1993, pg. 279)A máscara provoca transformações imediatas para quem vê e quem a usa. Para o ator, pode causar inicialmente, sensação de desconforto, mas possibilita uma nova percepção sobre si mesmo e os outros:
“...ao vesti-la, percebe uma limitação no seu campo visual, a respiração é dificultada e a voz ou se distorce ou perde força. Em compensação, o espaço à sua volta toma outras dimensões, o simples mover do corpo exige uma atenção tal que, para mínimos gestos, exige-se muita concentração. A máscara leva à conscientização do corpo, tornando o ator muito sensível aos estímulos físicos que o cercam...” (AMARAL, 2002, pg. 43)Ao mesmo tempo, a máscara remete a um sentido que transcende o uso de um objeto qualquer. Na relação do ator com a máscara persistem os resquícios de um caráter sagrado decorrente da presença da máscara em cerimônias rituais:
“A máscara ritual não é um objeto qualquer. Tem um sentido sagrado. A máscara ritual encerra em si forças. É uma transferência de energias. Nos rituais as máscaras têm uma função, estão ligadas a ações, ações-essenciais. Têm também um sentido de mutação, metamorfose... A Máscara ritual transcende. Dá vida a um ser divino... Concretiza conceitos abstratos. Confere uma qualidade espiritual ao homem. Representa o espírito dos mortos e dos animais...” (AMARAL, 1993, pg. 31)A máscara ritual provoca efeitos contraditórios e complementares. Ao mesmo tempo em que possibilita a identificação com aquilo que se quer imitar, também permite que aquele que a usa possa distanciar-se de si mesmo ao vivenciar outra personalidade:
“Nos rituais ocorre um desdobramento imediato de personalidades. Ocorre uma identificação com o que se pretende imitar, seja com uma entidade sobrenatural, seja com forças da natureza ou com animais. É um sair de si e um entrar noutra personalidade. Processo esse semelhante ao do delinear de personagens. É o homem que, saindo de seu quotidiano, se transforma, acarretando modificações ao seu redor e transformando o seu ambiente, apresentando outra realidade...” (AMARAL, 1993, pg. 33)A presença da máscara em cerimônias rituais permite ao ser humano fortalecer o acesso a um universo sobrenatural para buscar uma explicação mágica para fenômenos naturais e sociais. Os gestos repetitivos dos rituais representam aspectos essenciais e verdadeiros de uma sociedade, num determinado momento histórico:
“Rituais são cerimônias coletivas onde se realizam determinadas ações que provocam na mente dos seus participantes uma emoção que lhes confere uma espécie de iluminação, uma conscientização que os transporta para algo além, capacitando-os a enfrentar melhor as dificuldades do dia a dia. E, em se transformando, transformar-se também todo o ambiente.” (AMARAL, 1993, pg. 26)Ana Maria Amaral destaca a existência de diversos tipos de máscaras no teatro, que podem ser caracterizadas segundo sua forma, tamanho ou material com que é produzida. Essa classificação implica em diferentes formas de uso e relação com elas:
“... De acordo com a forma, elas podem ser neutras, expressivas ou abstratas... De acordo com o material com que são confeccionadas, podem ser rígidas ou maleáveis. As rígidas são construídas de madeira, metal, couro, tecido, papel machê, plástico, isopor. As maleáveis podem ser feitas de tecido ou couro fino, espuma, látex. De acordo com o tamanho podem ser faciais (cobrindo todo o rosto), meia-máscara (só a parte superior do rosto), parciais (nariz, orelha, partes do corpo), ou corporais (corpo inteiro).” (AMARAL, 2002, pg. 44 – em nota de rodapé)Para desenvolver a interpretação, a autora propõe a realização de exercícios em duas etapas: a primeira utilizando a máscara neutra e a segunda, com máscaras expressivas. Mesmo que a neutralidade da máscara não seja possível plenamente, essa primeira etapa de trabalho prioriza exercícios com “máscaras sem características marcantes” e o despojamento do ator para criar o personagem (AMARAL, 2002, pg. 45). Dessa maneira, a máscara neutra contribui para a formação do ator:
“...A máscara neutra é o oposto da individualidade. Através dela o ator começa a se perceber e aprende a desvencilhar-se de sua própria personalidade. Despoja-se de si, abrindo espaço para o personagem. Entra no vazio. É o ser antes de qualquer definição. Em máscara neutra percebe-se o ponto zero, momento de energização e de escuta que antecede a ação, pausa antes do agir. Mas esse é apenas um momento fugaz, pois assim que recebe algum estímulo exterior, essa neutralidade cessa. E ao sair do estado neutro a máscara reage, sem ‘pré-conceitos’, e, assim desprevenida, age como se percebesse o mundo pela primeira vez...” (AMARAL, 2002, pg. 43-44).Já as máscaras expressivas representam personagens que possuem características e ações próprias. Se relacionam com o espaço e com os outros personagens de um modo próprio:
“Nos exercícios com máscara expressiva, o primeiro impacto é o mais importante, pois é o momento em que a máscara é vista, vê. Num primeiro instante ela se apresenta tal como é, um objeto inerte, para depois passar a sensação de que é viva. É vista, também vê. Respira. Sua imagem deve ser coerente com sua postura. O que ela representa deve ser percebido de forma total, nos traços da máscara, na postura corporal do ator, em seus gestos, na maneira de andar, olhar, reagir.” (AMARAL, 2002, pg. 58).A máscara torna-se um objeto animado, na medida em que reage aos estímulos. O ator em máscara reage com todo o corpo, deixando claras as ações. Além da precisão das ações, a máscara pede um jogo cênico entre o personagem e o público, a triangulação:
“As ações devem ser claras. Uma cena com máscaras é uma escrita. Cada frase deve ser anunciada separadamente e completada antes de se iniciar a próxima. O início e o fim de uma ação, o ritmo dos movimentos e as pausas equivalem a pontos e vírgulas. “No jogo cênico com máscaras é interessante que ocorra a triangulação. Triangulação é quando a intenção, que antecede a ação, é mostrada através de uma troca de olhar entre personagem e público. Uma pequena pausa na qual a intenção de uma ação é reforçada num diálogo mudo entre o palco e a plateia.” (AMARAL, 2002, pg. 55).Dario Fo afirma que o uso da máscara no teatro, exige do ator um intenso e desgastante trabalho de atuação. O ator deve buscar uma gestualidade específica, que está sustentada no corpo inteiro:
“O corpo movimenta-se e gesticula incessante e completamente, indo sempre além do mero balançar de ombros. Por quê? Porque todo o corpo funciona como uma espécie de moldura à máscara, transformando sua fixidez. São esses gestos, com ritmo e dimensão variável, que modificam o significado e o valor da própria máscara. É cansativo atuar para e com a máscara, pois isso exige a realização de movimentos bruscos e contínuos com a parte externa do pescoço e a execução de rápidas reviravoltas – esquerda/direita, alto/baixo -, inclusive para se alcançarem efeitos de uma agressividade quase animalesca...” (DARIO FO, 2004, pg. 53)Para Dario Fo a gestualidade teatral precisa buscar respaldo nos gestos do cotidiano. O ator deve ter consciência de seus gestos e aprender a ter um controle maior sobre sua gestualidade. Encontrar gestos que sejam a “expressão viva das exigências humanas” e adaptá-los a máscara deve ser sua preocupação constante:
“Qual é a utilidade da máscara? Ela serve para agigantar e, simultaneamente, fazer uma síntese do personagem, conferindo uma ampliação e desenvolvimento do gesto. Esse gesto não deve ser arbitrário, para que o público, o imediato reflexo do ator, possa acompanhar com total compreensão o discurso, principalmente quando se trata de um efeito, uma gag ou um fecho cômico.” (DARIO FO, 2004, pg. 63)A atitude fundamental da atuação é a procura pela síntese do gesto, que permite ao ator selecionar os movimentos essenciais para compor o personagem interpretado pela máscara:
“... a máscara impõe uma síntese do gesto, envolvendo a gestualidade corporal na íntegra. Pois, se para atingir um certo efeito realizarmos uma multiplicidade descabida de gestos, vamos estar apenas destruindo o valor do próprio gesto. É necessário a seleção dos gestos e a consciência dos mesmos. O movimento, a atitude geral, a colocação do corpo devem ser ponderados e essenciais.” (DARIO FO, 2004, pg. 64-65)
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Os objetos estão presentes cotidianamente na vida humana, mesmo que muitas vezes passem despercebidos. Naturais ou construídos pelos homens, eles fazem parte do nosso universo cultural. Por mais simples e banais que possam parecer são significativos para nos constituirmos. O ser humano mantém com eles relações funcionais e afetivas:
“Homens e objetos vivem entre si tão ligados que os objetos fazem parte do seu universo afetivo, não existem independentes do homem, mas o homem também não vive sem eles. Estão ligados por funções e por afetos...” (AMARAL, 1993, pg. 208)No Teatro de Objetos, o objeto se torna “sujeito da ação” e “adquire uma alma própria” (AMARAL, 1993, pg. 213). Já não importa tanto a sua funcionalidade, mas o que podemos expressar através dele. Há uma transformação do objeto, um novo uso e uma nova percepção para algo que faz parte da vida diária:
“No teatro de objetos há como que uma sacralização do objeto quotidiano, ou seja, profano. Os objetos que num primeiro momento nos parecem simples coisas para serem usadas, em cena se transformam, surgem carregados de ambiguidades e de simbologias...” (AMARAL, 1993, pg. 213)Deixando o simples universo do cotidiano o objeto passa a ter um novo significado, um significado inesperado, surpreendente. Ele se constitui como elemento simbólico do nosso imaginário:
“O ritual da sociedade moderna... se apoia no objeto funcional. Mas o funcional em si não é suficiente para conferir sentido à vida humana. O imaginário o é. O imaginário é a mola propulsora da vida, só ele pode dar sentido à condição humana. E no teatro de objetos o objeto funcional se transporta para o domínio ou campo do imaginário.” (AMARAL, 1993, pg. 213-214)Os objetos “inanimados” são os elementos centrais do Teatro de Objetos. Em cena, eles revelam outras formas de perceber o mundo, e mostram isso, principalmente por meio das metáforas:
“Os objetos são importantes por seu poder de criar metáforas. Eles têm essa capacidade de apresentar situações de maneira direta, peculiar e simbólica. Quando apropriadamente escolhidos, são um discurso em si. Por si já apresentam conteúdos. E o que formal e fisicamente sugerem, torna-se mais evidente no desenrolar da ação, na animação, somando-se ainda os significados que os objetos despertam no tipo de relações que podem manter entre si. Uma gaiola lembra prisão; um martelo representa a força, a opressão, ou o trabalho; relógios referem-se ao tempo...” (AMARAL, 2002, pg. 121)O objeto torna-se animado a partir do movimento desencadeado pelo ator-manipulador. Mas não é um movimento qualquer. Trata-se de um movimento marcado pela intencionalidade. O ator-manipulador provoca a ação, através do objeto:
“Sob o ponto de vista dramático, movimento é o que confere vida a um objeto. Em teatro de animação, movimento é uma ação com intenção. Um objeto torna-se animado quando os seus movimentos são, ou parecem ser, intencionais. Essa sua aparente intenção lhe é conferida pelo ator-manipulador. Sob os seus impulsos, o objeto ‘adquire vida’. O movimento dos objetos obedece a estímulos internos e externos... O movimento, portanto, depende da forma do objeto e, de acordo com o tipo de animação que recebe, sua figura se modifica, parece sofrer transformações.” (AMARAL, 2002, pg. 120)O ator-manipulador precisa ter consciência sobre o tipo de relação que pode estabelecer com o objeto. Só assim poderá mostrar com precisão ao público o que está acontecendo em cena:
“Numa cena com objetos o ator assume várias funções: é (quase sempre) simples manipulador; é auxiliar do objeto (por exemplo, quando sua mão lhe abre uma porta); e pode ser também um personagem que contracena com o objeto. Por isso o ator precisa ter bem claro, para si mesmo, quem é, definir o que o objeto representa para ele e que tipo de relação existe entre ambos.” (AMARAL, 2002, pg. 124-125)Ao contrário dos bonecos e máscaras que são confeccionados para serem animados, os objetos já possuem uma forma e uma materialidade estabelecidas em sua existência. A animação é determinada e condicionada por essa estrutura:
“...no teatro de objetos, a forma dos protagonistas, isto é, dos objetos, vem pronta e como tal deve ser tomada. As suas estruturas determinam também os seus movimentos, definindo, ampliando ou limitando sua atuação.” (AMARAL, 2002, pg. 121-122)Ana Maria ressalta que o simples uso de um objeto em cena não é suficiente para caracterizá-la como Teatro de Objetos. No Teatro de Objetos, o próprio objeto deve ser o elemento essencial da ação:
“...O objeto só é personagem quando tomado e apresentado em si mesmo, isto é, em seu conteúdo, cor, forma, textura e não enquanto objeto significante para o personagem encarnado pelo ator.” (AMARAL, 2002, pg. 125)
Texto de: Maristela Marasca
Março/2014
Março/2014
BIBLIOGRAFIA:
AMARAL, Ana Maria. O Ator e Seus Duplos – Máscara, Bonecos, Objetos, Edusp/ Ed. Senac São Paulo, São Paulo – SP, 2002.
________________. Teatro de Formas Animadas, Edusp, São Paulo – SP, 1993.
FO, Dario e RAME, Franca (organizadora). Manual Mínimo do Ator, 3ª ed., Ed. Senac São Paulo, São Paulo – SP, 2004
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Em 1995, participei de um laboratório de teatro de sombra que me possibilitou entrar em contato com a dimensão técnica, a história e a criação do espetáculo de sombra. Trta-se do laboratório “O Sentimento do Mundo”, ministrado por integrantes do Grupo Gioco Vita, da Itália, com a coordenação de Fabrizio Montechi, realizado na Aldeia de Arcozelo, no Rio de Janeiro. A promoção foi da FUNARTE - Fundação Nacional de Artes do Ministério da Cultura, ABTB - Associação Brasileira de Teatro de Bonecos e Instituit International de la Marionnette – França.
O laboratório tornou evidente para mim que o teatro de sombra necessita de um mergulho para dentro nós mesmos para uma assimilação do universo do teatro de sombra e, paralelamente, o domínio da técnica para a sua execução. Pode-se pensar que é óbvia essa questão de olhar para dentro de si, pois é esse mergulho que possibilita a verdade também nas outras formas teatrais e nas artes em geral. Contudo, o teatro de sombra tem uma peculiaridade com relação às outras formas teatrais, nas quais o elemento material é o que faz a ação teatral: o corpo do ator, boneco, máscara, objeto. Enquanto no teatro de sombra a ação teatral é feita por uma imagem: a sombra.
Outro aspecto peculiar ao teatro de sombra é que antes do teatro, antes da técnica está a compreensão do seja a sombra. Às vezes quase objeto, dando a impressão que pode ser tocada. Noutras aparições totalmente espírito; algo que está em algum lugar, mas que não é. Pois o que ela é nunca é algo material, palpável. O que há de palpável, material no teatro de sombra é o que a gera. O que ela é, é algo imaterial, ou seja, a sombra e a luz.
Outra característica da sombra é que ela pode ser num momento minúscula e em milésimos de segundos gigante, sendo ainda ela mesma. Ser totalmente preta e num piscar de olhos ser multicolorida. Estar diante de nós e sumir. Ser uma e ser múltiplas quase no mesmo instante. Essas características da Sombra, dentre outras, a difere das outras formas teatrais.
“A sombra é uma escrita; em hieroglifos que não entendo completamente” – essa foi uma definição minha logo nos primeiros exercícios do Laboratório em Arcozelo (1995). Um dado exercício proposto pelo Gioco Vita pedia que observássemos a sombra derivada do sol, passando pelos itens fixos da Aldeia de Arcozelo: prédios, árvores, postes, pedras, morros. Me ative à sombra de uma árvore, destas majestosas e que se parecem com os desenhos feitos pelas crianças: um tronco e uma frondosa copa arredondada. A sombra dela era uma cópia perfeita do modelo. Apenas por alguns instantes. Me atendo por uns minutos na releitura de anotações, desviei a atenção da sombra e, de repente ela era quase a de um pinheiro. Eu havia marcado o contorno da “primeira sombra” com pedras e enquanto tentava verificar o que tinha alterado, observando de onde para onde a sombra tinha se movimentado, percebi que o terreno era ondulado. A partir da ondulação a forma da sombra deixava de ser arredondada e se alongava e, em breve, a sombra que eu tentava dimensionar não existia mais. Aquela sombra arrendonda e completamente fechada, escura, tinha dado lugar ao contorno de uma árvore pontilhado no seu interior por focos de luz, que hora brilhavam hora esvaneciam-se. A luz que passava entre os galhos da árvore e chegava a pedras brancas gerava uma luminosidade extraordinária nestes pontos que atraiam o olhar para si. Tudo o mais tornava-se menos expressivo. Num instante nada mais de sombra havia. Ou tudo tornara-se sombra. Nuvens haviam bloqueado completamente a luz do sol.
Pois bem, a ideia de que a sombra é uma escrita antiga apenas parcialmente revelada tem me acompanhado. Elaborar um espetáculo é utilizar essa escrita, é decifrá-la, ao menos parcialmente, é criar novos hieroglifos. Praticar o teatro de sombra é olhar para dentro de nós mesmos. Entrar em contato com nossa própria dimensão de sombras; e de luz. A estética do teatro de sombra está relacionada com a ideia da peça e com a dramaturgia. Mas inevitavelmente será produto de nossa percepção dessa imagem fugaz, em nosso interior e ao nosso entorno.
E a história do teatro de sombra está repleta de acontecimentos mágicos e do mundo dos espíritos.
Na China, no ano 121 a.C. Shao Wong revelou ao imperador Wu-ti, a imagem da sua falecida consorte. Como retribuição o imperador conferiu-lhe o título de “Marechal do Saber Perfeito”. O efeito de comunicação com os espíritos era, na verdade, o teatro de sombra (BERTHOLD, 2001, p. 55). E segue a autora: “A evocação visual dos 'espíritos dos mortos', na época do imperador Wu-ti, reflete-se hoje na terminologia do teatro chinês, onde as duas portas – de entrada e de saída -, à direita e á esquerda do palco, sempre foram conhecidas como as ‘portas das sombras’ ou ‘portas das almas’.” (BERTHOLD, 2001, p. 58).
Essa dimensão mágica, talvez até pela suas possibilidades técnicas, relacionam o teatro de sombra em diversas culturas com acontecimentos religiosos. Na Indonésia, por exemplo, o termo wayang purwa testemunha a grande época do teatro. Wayang quer dizer sombra (e, mais tarde, também espetáculo, num sentido mais amplo); purwa, significa antigo, pertencente a uma antiguidade remota. O wayang purwa nunca se tornou mero entretenimento profano; até hoje não perdeu sua função mágica de mediador entre homem e o mundo metafísico.” (BERTHOLD, 2001, p. 44)
E o Oriente Médio passou a viver sob novos paradigmas culturais amparados no Alcorão, após Maomé, em 610, ter recebido a revelação do Islã e, em consequência disso o teatro foi proibido de utilizar a imagem de Deus, personagem recorrente no drama antigo desta região. Foi assim que, “Mediante o uso de heróis-bonecos turcos karagöz e Hadjeivat no teatro de sombras, a proibição do Islã à representação das imagens de seres humanos era astuciosamente ludibriada. Esses heróis, corporificados em bonecos maravilhosos, eram feitos de couro de camelo. Eram movimentados por meio de varas e possuíam buracos em suas aticulações através dos quais a luz brilhava” (BERTHOLD, 2001, p. 19).
No laboratório “O Sentimento do Mundo”, Fabrizio Montechi, um dos ministrantes da Oficina referia-se ao seu grupo de teatro de sombra Gioco Vita, explicando que “assimilamos uma técnica e a transformamos em uma linguagem”1. Pois bem, que técnica foi assimilada pelo grupo italiano e que linguagem eles criaram?
A técnica assimildada é exatamente aquela vinda da Ásia e que fixou uma expressão tanto na América quanto na Europa: Teatro de Sombra Chinesa. Por toda a Ásia e no Oriente Médio, por milênios, o teatro de sombra foi e é praticado seguindo uma tradição técnica e estética rígida. A dimensão técnica consiste de uma estrutura de funcionamento que se inicia no ponto de luz, seguido de uma sillhueta humana ou de objeto, a tela e, diante dela, o espectador. Via de regra o ponto de luz é fixo assim como a tela. Os movimentos e a ação da cena são realizados pela silhueta. Em alguns casos pode haver público também do lado de trás da tela, ou seja, do mesmo lado dos manipuladores. Quase sempre os manipuladores ficavam ocultos de quem estivesse na frente da tela, ou seja, do público. Mas em algumas culturas a tela era suspensa deixando o público apreciar também os movimentos de pernas e pés dos encenadores. A sombra era negra ou colorida. A sombra negra era obtida com uma silhueta que bloqueava totalmente a passagem de luz (corpo humano ou papiro). A cor podia ser obtida com silhuetas de couro muito fina pintada. A luz passava pela silhueta projetando as cores com que foi elaborada.
De modo muito simplificado essa foi a técnica com a qual o Gioco Vita tomou contato. Os itens utilizados para essa forma teatral basicamente não foram alterados pelos italianos: ou seja, sempre há o uso de um ponto de luz, uma silhueta, a tela na qual o publico assiste a ação da peça. O que eles fizeram – e fazem, num laboratório permanente – é alterar, ampliar o uso desses elementos. Para o Gioco Vita – e isso foi objeto constante de estudo no Laboratório – a luz, além de ser utilizada fixa, pode ser movimentada. Pode-se utilizar dois, três ou mais pontos de luz concomitantemente e pode estar tanto atrás como na frente da tela. A tela pode deixar de ser apenas fixa. Pode ser presa em um ponto e movimentada, sacudida durante a o andamento de uma cena, como pode ser móvel, ou seja, conduzida pelo espaço enquanto a narrativa se desenrola. Além de seu formato plano e em tecido, a “tela” pode ser a parede ou o teto do prédio, o corpo dos artistas, o formato pode ser bolha, curvo, franzido e tudo o mais que a imaginação e a narrativa da peça possibilitarem.
O manipulador além de estar oculto do público pode estar à vista dos espectadores, até mesmo no meio deles. Pode estar, além de projetando sombras, intercalando a história com outras formas teatrais (como ator, com boneco, máscara, objetos) e com outras artes (música, canto, dança, circo).
De um teatro com referências mitológicas e religiosas como o ásiático e de encenações repletas de códigos herméticos; do uso de uma silhueta com poucos e codificados movimentos o Gioco Vita passou a trabalhar com temas populares e com grande quantidade de silhuetas, diversos pontos de luz, mais de uma tela. O que se poderia considerar como apenas mudança de caráter técnico consistiu na verdade na criação de uma linguagem. O grupo passou a ser reconhecido por essa linguagem e pela sua capacidade de dinamizar o teatro de sombra. Do refinado acabamento estético produto de um texto apropriado ao teatro de sombra, do esmero na elaboração e manipulação das silhuetas, do domínio do corpo para produzir sombra e pelo uso da voz com características específicas para essa forma teatral, do dinâmico uso do espaço o grupo criou uma estética que possibilita o seu reconhecimento. E o teatro que resulta de todo esse processo de pesquisa é justamente a criação de uma linguagem. Sua qualificação abriu um campo de atuação em todos os continentes. Tornou o grupo uma constante nos mais importantes festivais de animação do mundo.
O laboratório buscava, como próprio título deixava transparecer, que cada aluno buscasse informações no seu histórico de vida, indagando-se sobre qual é o seu “Sentimento do Mundo”. A partir desse histórico pessoal, cada participante poderia iniciar ainda nas aulas a busca do seu referencial estético. Se os execícios de sensibilização e de reflexão pretendiam despertar esse universo onírico de cada um, como complemento a informação técnica possibilitava a criação de cenas teatrais de sombra que traduziam o universo pessoal de cada integrante.
Como resultado do laboratório ficou claro para mim que a matéria-prima da sombra: é o ambíguo, o sonho, a imaginação, o obscuro, a energia contida nas coisas e nos acontecimentos, a luz (que paradigmaticamente também pode ser a “sombra” do teatro de sombra). Essa área do intangível, que não raro é difícil de ser evidenciada pelas outras formas teatrais, é exatamente a matéria-prima do teatro de sombra.
No Projeto Espaços de Sombra e Teatro o Grupo A Turma do Dionísio propõem-se a criar um espetáculo que contemple o teatro de sombra e sua interação com o teatro de atores e de bonecos. A proposta é desenvolver uma dramaturgia específica na qual essa diversidade de linguagem dialogue. E que permita também investigar novas formas de ocupação do espaço, pois será realizado em salas alternativas. A temática da peça será: a cultura das Missões Jesuítico-Guarani. A cidade sede do grupo, Santo Ângelo, é uma das antigas cidades missioneiras (dos séculos XVII e XVIII). A montagem pretende utilizar uma estética contemporânea, assentada numa linguagem artística ágil, instigadora, com forte expressividade sonora e imagética.
NOTAS:
1 Transcrição de anotações feitas pelo autor.
Texto de: Jerson Fontana
Abril/2014
Abril/2014
BIBLIOGRAFIA:
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Editora Perspectiva, 2001. São Paulo.
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