Ñamandu, o
verdadeiro Pai da humanidade
Este texto trata da parcialidade guarani denominada Mbyá. Mbyá, contudo, é como nós os chamamos, pois eles se denominam de “Jeguakáva Tenonde Porañgue i”, ou seja: “os primeiros homens escolhidos que usam o adorno de plumas (na cabeça)”. Os assuntos religiosos dos Mbyá podem dividir-se em: “comuns”, acessíveis a qualquer pessoa e “sagrados”, chamados “as primeiras palavras bonitas”, divulgados somente entre membros das tribos. Apesar de os Mbyá serem muito fechados nas suas tradições, o pesquisador Leon Cadogan, pela confiança adquirida perante os índios, conheceu muito do mundo mítico deles. É com base nas informações de Cadogan que foi elaborado o presente texto.
Com base no Gênesis Mbyá-guaraní “Ñande Ru Papa Tenonde” aparece como o criador de “Ñamandu Ru Ete” e, segundo se depreende dos mitos e hinos “Ñamandu Ru Ete” é o Ser Supremo de sua teogonia. “Ñamandu Ru Ete”, o verdadeiro Pai Ñamandu; ou o verdadeiro Pai do ou dos Ñamandu; deus do sol. Ñamandu seria o verdadeiro Pai da humanidade ou o verdadeiro Pai dos deuses.
Ñande Ru Papa Tenonde, na teogonia Mbyá, é o criador daquele que seria o verdadeiro Pai dos deuses: Ñamandu Ru Ete. O povo Mbyá explica que chamam de Ñamandu Ru Ete pelo fato de ele ter-se inspirado de fervor. Ñamandu Ru Ete é considerado o Primeiro Pai Mbyá e isto deve-se ao fato de ele ter existido nos últimos confins do espaço. É também por isso que o designam como: Nosso Pai Último-último-Primeiro.
Fundamento da Língua Humana
Ñamandu é o criador do “fundamento da linguagem humana”, e esse fundamento embasa o universo físico e espiritual deste povo, conforme se pode ver em seu texto mítico:
São elementos constitutivos do universo espiritual mybiá: a vara insígnia, o esqueleto humano, a neblina, dentre outros.
A “Vara insígnia” é emblema de poder de Ñande Ru e também dos dirigentes. E foi da ponta da vara insígnia de Ñande Ru que apareceram as chamas e a neblina das quais será engendrado o universo. E também deu origem (no vocabulário religioso) à palavra Yvyra’i kãnga, quer dizer, ossos do que porta a vara insígnia; isto é, o esqueleto humano, o corpo humano.
O esqueleto humano (o corpo humano), outro elemento importante do universo espiritual Mbyá, requer que, quando morre uma pessoa, se entoe uma “poesia muito triste” (endecha) que refere-se aos deveres do Pai dos deuses (Ñamandu) com os esqueletos dos mortos. O costume de conservar os esqueletos dos mortos formam parte de um culto da raça, mas que paulatinamente está caindo em desuso, tendo poucos que o observam.
“O cadáver é enterrado geralmente em um cesto de taquara (kuarapemby), depois de decomposto é exumado, os ossos são lavados cuidadosamente e guardados em um recipiente de cedro, especialmente fabricado para esse efeito.” (CADOGAN, 1997, p. 88) Ali os ossos ficavam esperando pela ressurreição. Esses ossos só seriam sepultados definitivamente depois de ter sido recebida uma mensagem dos deuses, comunicando que não haveria ressurreição. Antigamente, nenhum morto era sepultado pela segunda vez sem antes serem conservado seus ossos, mas atualmente este hábito está em desuso.
A seguir, o trecho dos versos sagrados narra a origem deste fundamento religioso:
É a neblina vivicante que infunde vitalidade em todos os seres (“tatachina”, ou seja, tênue neblina).
O Conceito Guarani de "alma"
Para os Mbyá-guarani, “a língua não é uma invenção humana, mas dom singular outorgado por Deus aos homenes”. (CADOGAN, 1997, p. 301) E a elegância da língua guarani fortalece essa opinião. Afirmam, ainda “não só que a linguagem humana é de origem divina, mas que foi a primeira obra do Albsoluto” (CADOGAN, 1997, p. 301) quando este estava ainda no meio do caos primogênito. “E agregam que a linguagem humana, ‘criada por Ñande Ru no meio das trevas originárias, antes de conhecer as coisas’ constitui o germem, a medula da palavra-alma que, uma vez criada a terra, enviaria por meio de seus Pais a palavra-alma para que se encarne”. (CADOGAN, 1997, p. 301)
Um mburuvicha (líder religioso) ao ser perguntado sobre o que significa Ayvu Rapyta, respondeu: “o fundamento da linguagem humana é a palavra-alma originária, a que Nossos Primeiros Pais, ao enviar seus numerosos filhos para a morada terrena para erguerem-se (assumirem forma humana), lhes deram”. (CADOGAN, 1997, p. 42)
Algumas Expressões Guarani Com Elevada Importância na Sua Cultura
Jeguaka – “adorno de cabeça” –um gorro de algodão adornado de plumas. Hoje se usa pouco.
Yvy Tenonde – “a primeira Terra”, criada por Ñande Ru e destruida pelo dilúvio.
Yvytu ymã – “vento primitivo”, ou seja, o vento sul.
Ara Yma – “tempo-espaço originário”, o caos. Esta expressão também designa o inverno.
Pytã – “trevas”. Refere-se ao caos primitivo, mas no qual não havia escuridão.
Pytü rupa - “leito das trevas”, nome religioso da noite
Opy’a jechakáre oìko oikóvy – “existia iluminado pelo reflexo de seu próprio coração”.
Ñemomburu – “inspirar-se de fervor religioso”.
Mbaraete – “fortaleza espiritual”
Ayvu marä eÿ – “palavras indestrutíveis”, são as palavras das quais se compõe os hinos e orações.
Ñe’ë porã tenonde – “as primeiras palabras belas”
Ãngue – “a alma de um defunto”.
Tataendy – “chamas”, é a manifestação visível da divindade. (Nas pessoas a quem os deuses dispensam a graça divina, lhes aparecem chamas, nas palmas das mãos e nas plantas do pés).
Tatachina – “tênue neblina”, é a neblina vivicante que infunde vitalidade em todos os seres.
Ñamandu Ru Ete - o verdadeiro Pai Ñamandu; ou o verdadeiro Pai do ou dos Ñamandu; deus do sol.
Gueromoñemoña – “fazer que se engendre como parte do próprio ser”; ou fazer com que se multipliquem
Karai Ru Ete - Deus do fogo, “o verdadeiro Pai dos Karai”
Ayvu marä eÿ - palavras indestrutíveis, São as palavras das quais se compõe os hinos e orações. (CADOGAN, 1997, p. 43, 44, 45)
Ayvu Rapyta
Cabe ressaltar que na cultura Mbyá a linguagem utilizada pelos líderes religiosos tem muitas expressões singulares, diferentes daquelas utilizadas no cotidiano. A linguagem dos religiosos é poética e sagrada.
Essa diferença entre o vocabulário religioso e o cotidiano fica evidenciada na expressão, do vocabulário cotidiano, “dedos e unhas”, que no vocabulário religioso é: “os ramos floridos das divinas palmas das mãos” (Yvára popyte rakã poty). (CADOGAN, 1997, p. 31)
Pode-se perceber o quanto a “palavra” é importante para o Mbyá observando-se que, para esse povo, o conceito de alma só pode ser compreendido como algo que está constituido na própria palavra. Relata Cadogan que “expressar idéias e porção divina da alma são sinônimos”. (CADOGAN, 1997, p. 302) Assim, a expressão “Ayvu Rapyta” pode ajudar a entender melhor essa dimensão. Ayvu, significa: falar, linguagem humana; Ayvu Rapyta, significa literalmente: origem da linguagem humana, ou seja, aquilo que podemos chamar de “origem ou germe da porção divina da alma” (CADOGAN, 1997, p. 302). Portanto, a relação entre palavra e alma, para so Mbyá, fica assim evidente. Isto é inclusive ressaltado na expressão guarani “Ñe’ëy, ñe’ë”, ou seja, a palavra-alma, a porção divina da alma que se encarna no ser humano uma vez gerado.
É importante destacar ainda que, além dos vocabulários cotidiano e religioso, o Mbyá possui o chamado “idioma secreto”. E, que, além do Mbyá, existem outras parcialidades guarani. Todos são povos guarani, mas com diferenças culturais entre sí.
NOTAS:
1 Ou seja, tendo assumido a forma humana...
2 Traduções do espanhol do autor do texto.
3 Pelos deuses.
BIBLIOGRAFIA:
CADOGAN, Léon. Ayvu Rapyta – Textos Míticos de los Mbyá-Guarani del Guairá, 1997, 3ªedição, Asuncuión del Paraguay.
_________________ . Bibliteca Paraguaya de Antropología, Vol. XVI, Fundación “Leon Cadogan” CEADUC – CEPAG.
Ñande Ru Papa Tenonde, na teogonia Mbyá, é o criador daquele que seria o verdadeiro Pai dos deuses: Ñamandu Ru Ete. O povo Mbyá explica que chamam de Ñamandu Ru Ete pelo fato de ele ter-se inspirado de fervor. Ñamandu Ru Ete é considerado o Primeiro Pai Mbyá e isto deve-se ao fato de ele ter existido nos últimos confins do espaço. É também por isso que o designam como: Nosso Pai Último-último-Primeiro.
Fundamento da Língua Humana
Ñamandu é o criador do “fundamento da linguagem humana”, e esse fundamento embasa o universo físico e espiritual deste povo, conforme se pode ver em seu texto mítico:
1 O verdadeiro Pai Ñamandú, o primeiro,Elementos Constitutivos do Universo Cultural Mbyá-Guarani
de uma pequena porção de sua própria divindade,
da sabedoria contida em sua própria divindade,
e em virtude de sua sabedoria criadora
fez que se engendrassem chamas e tênue neblina.
2 Tendo-se erguido, 1
da sabedoria contida na sua própria divindade,
e em virtude de sua sabedoria criadora,
concebeu a origem da linguagem humana.
...
criou nosso Pai o fundamento da linguagem humana
e fez que formasse parte de sua própria divindade.
Antes de existir a terra,
No meio das trevas primogênitas,
antes de ter-se conhecimento das coisas,
criou aquilo que seria o fundamento da linguagem humana.2
São elementos constitutivos do universo espiritual mybiá: a vara insígnia, o esqueleto humano, a neblina, dentre outros.
A “Vara insígnia” é emblema de poder de Ñande Ru e também dos dirigentes. E foi da ponta da vara insígnia de Ñande Ru que apareceram as chamas e a neblina das quais será engendrado o universo. E também deu origem (no vocabulário religioso) à palavra Yvyra’i kãnga, quer dizer, ossos do que porta a vara insígnia; isto é, o esqueleto humano, o corpo humano.
O esqueleto humano (o corpo humano), outro elemento importante do universo espiritual Mbyá, requer que, quando morre uma pessoa, se entoe uma “poesia muito triste” (endecha) que refere-se aos deveres do Pai dos deuses (Ñamandu) com os esqueletos dos mortos. O costume de conservar os esqueletos dos mortos formam parte de um culto da raça, mas que paulatinamente está caindo em desuso, tendo poucos que o observam.
“O cadáver é enterrado geralmente em um cesto de taquara (kuarapemby), depois de decomposto é exumado, os ossos são lavados cuidadosamente e guardados em um recipiente de cedro, especialmente fabricado para esse efeito.” (CADOGAN, 1997, p. 88) Ali os ossos ficavam esperando pela ressurreição. Esses ossos só seriam sepultados definitivamente depois de ter sido recebida uma mensagem dos deuses, comunicando que não haveria ressurreição. Antigamente, nenhum morto era sepultado pela segunda vez sem antes serem conservado seus ossos, mas atualmente este hábito está em desuso.
A seguir, o trecho dos versos sagrados narra a origem deste fundamento religioso:
“Não quero que à semelhança da alma que está abandonada,Também a neblina compõe o universo mitico dos Mbyá-guarani, conforme os versos religiosos que seguem:
... sejam considerados os meus ossos.
Desejo veementemente que meus ossos amados3 não se convertam em terra” (CADOGAN, 1997, p. 93)
Depois destas coisas, a Jakairá Ru Ete disse: “Bem, tu vigiarás a fonte da neblinaEssa terra (o mundo em que vivemos), dizem os mburuvicha, é lugar de provas para a humanidade, por isso, foi criado o cachimbo e o tabaco para que com o fumo possam defender-se das enfermidades e dos duendes maléficos.
que engendra as palavras inspiradas.
Aqueles que concebi na minha solidão,
faz que o vigiem teus filhos.
os Jakairá de coração grande.
Em virtude disso faz que se chamem:
“donos da neblina das palavras inspiradas” ... (CADOGAN, 1997, p. 55)
É a neblina vivicante que infunde vitalidade em todos os seres (“tatachina”, ou seja, tênue neblina).
O Conceito Guarani de "alma"
Para os Mbyá-guarani, “a língua não é uma invenção humana, mas dom singular outorgado por Deus aos homenes”. (CADOGAN, 1997, p. 301) E a elegância da língua guarani fortalece essa opinião. Afirmam, ainda “não só que a linguagem humana é de origem divina, mas que foi a primeira obra do Albsoluto” (CADOGAN, 1997, p. 301) quando este estava ainda no meio do caos primogênito. “E agregam que a linguagem humana, ‘criada por Ñande Ru no meio das trevas originárias, antes de conhecer as coisas’ constitui o germem, a medula da palavra-alma que, uma vez criada a terra, enviaria por meio de seus Pais a palavra-alma para que se encarne”. (CADOGAN, 1997, p. 301)
Um mburuvicha (líder religioso) ao ser perguntado sobre o que significa Ayvu Rapyta, respondeu: “o fundamento da linguagem humana é a palavra-alma originária, a que Nossos Primeiros Pais, ao enviar seus numerosos filhos para a morada terrena para erguerem-se (assumirem forma humana), lhes deram”. (CADOGAN, 1997, p. 42)
Algumas Expressões Guarani Com Elevada Importância na Sua Cultura
Jeguaka – “adorno de cabeça” –um gorro de algodão adornado de plumas. Hoje se usa pouco.
Yvy Tenonde – “a primeira Terra”, criada por Ñande Ru e destruida pelo dilúvio.
Yvytu ymã – “vento primitivo”, ou seja, o vento sul.
Ara Yma – “tempo-espaço originário”, o caos. Esta expressão também designa o inverno.
Pytã – “trevas”. Refere-se ao caos primitivo, mas no qual não havia escuridão.
Pytü rupa - “leito das trevas”, nome religioso da noite
Opy’a jechakáre oìko oikóvy – “existia iluminado pelo reflexo de seu próprio coração”.
Ñemomburu – “inspirar-se de fervor religioso”.
Mbaraete – “fortaleza espiritual”
Ayvu marä eÿ – “palavras indestrutíveis”, são as palavras das quais se compõe os hinos e orações.
Ñe’ë porã tenonde – “as primeiras palabras belas”
Ãngue – “a alma de um defunto”.
Tataendy – “chamas”, é a manifestação visível da divindade. (Nas pessoas a quem os deuses dispensam a graça divina, lhes aparecem chamas, nas palmas das mãos e nas plantas do pés).
Tatachina – “tênue neblina”, é a neblina vivicante que infunde vitalidade em todos os seres.
Ñamandu Ru Ete - o verdadeiro Pai Ñamandu; ou o verdadeiro Pai do ou dos Ñamandu; deus do sol.
Gueromoñemoña – “fazer que se engendre como parte do próprio ser”; ou fazer com que se multipliquem
Karai Ru Ete - Deus do fogo, “o verdadeiro Pai dos Karai”
Ayvu marä eÿ - palavras indestrutíveis, São as palavras das quais se compõe os hinos e orações. (CADOGAN, 1997, p. 43, 44, 45)
Ayvu Rapyta
Cabe ressaltar que na cultura Mbyá a linguagem utilizada pelos líderes religiosos tem muitas expressões singulares, diferentes daquelas utilizadas no cotidiano. A linguagem dos religiosos é poética e sagrada.
Essa diferença entre o vocabulário religioso e o cotidiano fica evidenciada na expressão, do vocabulário cotidiano, “dedos e unhas”, que no vocabulário religioso é: “os ramos floridos das divinas palmas das mãos” (Yvára popyte rakã poty). (CADOGAN, 1997, p. 31)
Pode-se perceber o quanto a “palavra” é importante para o Mbyá observando-se que, para esse povo, o conceito de alma só pode ser compreendido como algo que está constituido na própria palavra. Relata Cadogan que “expressar idéias e porção divina da alma são sinônimos”. (CADOGAN, 1997, p. 302) Assim, a expressão “Ayvu Rapyta” pode ajudar a entender melhor essa dimensão. Ayvu, significa: falar, linguagem humana; Ayvu Rapyta, significa literalmente: origem da linguagem humana, ou seja, aquilo que podemos chamar de “origem ou germe da porção divina da alma” (CADOGAN, 1997, p. 302). Portanto, a relação entre palavra e alma, para so Mbyá, fica assim evidente. Isto é inclusive ressaltado na expressão guarani “Ñe’ëy, ñe’ë”, ou seja, a palavra-alma, a porção divina da alma que se encarna no ser humano uma vez gerado.
É importante destacar ainda que, além dos vocabulários cotidiano e religioso, o Mbyá possui o chamado “idioma secreto”. E, que, além do Mbyá, existem outras parcialidades guarani. Todos são povos guarani, mas com diferenças culturais entre sí.
NOTAS:
1 Ou seja, tendo assumido a forma humana...
2 Traduções do espanhol do autor do texto.
3 Pelos deuses.
Texto de: Jerson Fontana
Janeiro/2014
Janeiro/2014
BIBLIOGRAFIA:
CADOGAN, Léon. Ayvu Rapyta – Textos Míticos de los Mbyá-Guarani del Guairá, 1997, 3ªedição, Asuncuión del Paraguay.
_________________ . Bibliteca Paraguaya de Antropología, Vol. XVI, Fundación “Leon Cadogan” CEADUC – CEPAG.
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Em nossa sociedade contemporânea, na região da antiga Província do Paraguai1, e de modo especial na área que hoje pertence Estado do Rio Grande do Sul, no território brasileiro, é bastante difundida a expressão “Terra Sem Mal”. Contudo, não são difundidas na mesma proporção as pesquisas sobre o significado deste lugar mitológico da cultura Guarani.
Hélène Clastres, autora da obra “Terra Sem Mal” (1975), discute o assunto fazendo uma retrospectiva da relação dos Tupi-Guarani com o mito da Terra Sem Mal, desde os anos 1.500, período em que se inicia a documentação escrita devido à chegada dos portugueses ao Brasil, até meados do séculos XX.
Hélène Clastres, autora da obra “Terra Sem Mal” (1975), discute o assunto fazendo uma retrospectiva da relação dos Tupi-Guarani com o mito da Terra Sem Mal, desde os anos 1.500, período em que se inicia a documentação escrita devido à chegada dos portugueses ao Brasil, até meados do séculos XX.
Na obra, a autora faz, inicialmente, referência a um pensamento dos religiosos da Igreja Católica que perdurou por muito tempo: o de que os tupi-guarani não praticavam nenhuma religião. Depois descreve, nestas sociedades, a função dos xamãs, seus discursos e efeitos. Argumenta também sobre grandes migrações em busca da Terra Sem Mal, ressaltando que nas sociedades guarani esse mito tem diferenças daquela dos tupi.
A religião dos Tupi-Guarani Antes da Religião Católica
Quando criança eu ouvia nas pregações de um religioso católico, nas romarias dos meses de novembro, no Caaró (Caibaté – RS), que os padres da Cia. de Jesus, do período das Missões Jesuítico-Guarani primeiro tiveram que humanizar os índios, para depois ensinar-lhes uma religião, a verdadeira religião. Esses discursos eram nos anos 1970. Porém, ainda hoje esse pensamento é difundido.
Esse argumento desestabilizador dos povos indígenas, no caso aqui em especial dos Tupi-Guarani, e que atinge, claro, sua religiosidade, vem de muito tempo. No Brasil, então colônia de Portugal, diversas são as citações que possivelmente embasem o pensamento de desconhecimento da religiosidade indígena.“É gente (os tupi do norte) que nenhum conhecimento tem de Deus, nem ídolos” (CLASTRES, 1975, p. 15) afirma o padre Manoel da Nóbrega em carta, no ano de 1549. Depois desta conclusão de Nóbrega, religiosos e viajantes passaram a admitir a ideia de que o povo tupi não tinha religião.
“Não há vestígio algum, entre os tupinambás, de crenças em divindades quaisquer” (CLASTRES, 1975, p. 17) escreve Jean de Léry e Claude d’Abbevillesegue na mesma linha afirmando que: “não creio que haja nenhuma nação no mundo sem alguma espécie de religião, exceto os índios tupinambás, que até hoje não adoram a Deus algum, nem celeste, nem terrestre, nem de ouro, nem de prata, nem de pedra preciosa, nem de pau, nem nenhuma outra coisa que seja.” (CLASTRES, 1975, p. 18) É interessante observar que entre Nóbrega e Abbeville transcorrem mais ou menos cento e sessenta anos.
Na província Jesuítica do Paraguai, em Assunção, na primeira metade do século XVII, então de domínio espanhol, escreve o padre capelão Francisco de Andrada, em 1545: “no adoraban ninguna cosa” (MELIÁ, 2003, p. 18. In: transcrição de manuscrito DHG, II). Porém, Montoya desvenda entre os guaranis uma tradição religiosa original: “o culto voltado aos ossos dos grandes xamãs... [ele] descobriu, isolados em plena floresta, espécies de templos em que eram conservados, dentro de redes enfeitadas com penas, esqueletos engalanados. Cestas suspensas nas paredes do templo continham alimentos como oferenda. O padre procedeu a um inquérito, concluindo que os esqueletos pertenciam a xamãs recém-falecidos, que numerosos índios os veneravam em segredo e que os xamãs vinham a esse lugar para comunicarem-se com seus espíritos e revelar suas predições.” (CLASTRES, 1975, p. 23) Esse acontecimento se deu com o Guarani que integrava as Missões e que, portanto, já tinha aderido à fé católica.
Contudo, mesmo deparando-se com evidências de práticas religiosas entre os povos que aqui habitavam, os missionários chegados da Europa continuavam reafirmando que o guarani não possuía religião. Obviamente esse pensamento referenda o propósito católico de ensinar-lhes uma religião.
E mesmo se considerarmos que, para os ocidentais, uma religião devia ter um conjunto claro de expressões para caracterizar-se como tal, e que a religiosidade guarani poderia não se inserir neste conjunto de regras, ainda assim os religiosos afirmam que o guarani não só não possuía religião, como nem ao menos superstições. Para os Europeus, uma religião era composta de rezas, ritos e a materialidade disso formada por objetos de culto, templos e representações de divindades. Como os tupi-guarani não possuíam esse conjunto de itens, especialmente aqueles materiais, isso deve ter facilitado a constatação de que eles não praticavam nenhuma religião.
Conforme o artigo “Textos Míticos dos Mbyá-Guarani”- que elaboramos para essa pesquisa e está publicado neste Blog – sabe-se que o Primeiro Pai dos Mbyá-Guarani é Nhamandú. Recitam os Mbyá, nos seus versos sagrados, que Nhamandú assume forma humana devido a sabedoria que ele já continha na sua própria divindade. E assim, inspirado de fervor cria o “fundamento da linguagem humana” que embasa o universo físico e espiritual deste povo. (CADOGAN, 1997). A sua religiosidade está, pois, embasada de modo privilegiado na palavra.
Tupã – escolhido pelos padres para ser o Deus cristão
A tradução para o Tupi e Guarani, do complexo referencial católico que estrutura essa religião, necessitou de adaptações e, de modo especial, extremo cuidado para traduzir expressões, como: Santíssima Trindade, a Virgindade de Maria, Filho de Deus e, obviamente, Deus.
A tradução de expressões singulares, em quaisquer idiomas, nunca é fácil. E no caso da tradução de termos que fundamentam a religião católica, essa tarefa foi difícil, basicamente por dois aspectos. Um deles é por tratar-se de termos que expressam ideias muito distantes da cultura dos povos catequizados, e por esse motivo, sempre corre-se o risco de que fiquem vagos, sem sentido. Outra dificuldade foi imposta pela própria igreja católica, pois na tradução pode ocorrer que a opção por alguns termos signifique contrariedade aos escritos sagrados. E os vigilantes dos livros sagrados estavam sempre de plantão. Em alguns casos, a fiscalização da tradução de termos como Deus, filho concebido sem o pecado original, virgindade, parecia mais ser perseguição ou disputa entre ordens religiosas do que a simples vigilância com as Escrituras Sagradas.
Assim que, a tradução para o Guarani dos textos indispensáveis para a catequização gerou muitas inquietações, dubiedades e, inclusive, processos por violação das escrituras. Emblemático é o caso da tradução dos termos: Filho da Mulher, Filho do Homem, Deus e Pai que foram denunciados pelo Bispo de Assunção do Paraguai Dom Bernardino Cárdenas por terem, na sua interpretação, significados impuros. A expressão Filho da Mulher traduzido para o guarani como Memby, na visão do denunciante significa filho gerado por fornicação e cópula carnal com o homem. Isso contraria as Escrituras, pois Cristo teria nascido sem a cópula. Filho do Homem, tornou-se Ta´ýra que significa esperma do homem; Tupã e Túva, Deus e Pai, respectivamente, que são nomes de demônios.
Isso é o que afirma Cárdenas. E justifica: “são heresias gravíssimas e verificadas contra a geração eterna e temporal do Verbo Divino, e contra a Virgindade Puríssima de Nossa Senhora e contra o nome soberano de Deus”.2 (MELIÁ, 2003, p. 213 – In. Pastells). A denúncia foi feita ao vice-rei do Perú, em 1651. E esse assunto da tradução destas quatro palavras chegou inclusive ao Rei de Espanha que determinou uma consulta a sábios da teologia e da língua guarani.
Na sua defesa, os jesuítas espanhóis afirmam: “ ... que o sínodo que celebrou o ilustríssimo senhor dom frei Martins Ignácio de Loyola, bispo que foi deste bispado, aprovou o dito catecismo, que foi elaborado pelo venerável frei Luis de Bolanhos ...” (MELIÁ, 2003, p. 216)
Assim, os astutos jesuítas, percebendo tratar-se mais de uma disputa interna na igreja do que a fiel tradução de algumas palavras, retiram de si a responsabilidade pela tradução e colocam-na sobre quem deveras as teria traduzido: frei Luis de Bolanhos, franciscano assim como o Bispo Cárdenas. E citam que o texto ora questionado teve sua tradução aprovada pelo Sínodo de Assunção de 1603, ratificados em 1611 e adotados como texto único no sínodo de 1631 e passou então a ser o catecismo usado por todos os padres das Missões. (MELIÁ, 2003)
Cabe, então, verificar que referências Bolaños teria utilizado para optar por essas palavras: ta’ýra: filho do homem; memby: filho da mulher; túva: pai e, especialmente, tupã para Deus?
Vamos nos deter aqui nas hipóteses que justificariam a utilização de tupã, para significar Deus. Provavelmente o frey Bolanhos tenha utilizado a tradução da língua portuguesa, da colônia do Brasil, feita por Anchieta em 1618. E mesmo essa tradução é precária em informações sobre por que Tupã viera a significar Deus, uma vez que, em tupi ou guarani não teria essa conotação.
Considera Meliá que o uso de tupã, para significar Deus, pode ter advindo pela oposição. Tupã é oposto de aña, demônio (MELIÁ, 2003). E, a meu ver de modo mais assertivo: “Os missioneiros aceitaram o vocábulo tupã para designar o Deus dos cristãos; pode-se afirmar sem temor de estar cometendo maiores equívocos que o sentido desta palavra escapa a sua compreensão e que, para justificar o uso que dela faziam, transladaram sobre ela sua própria noção cristã.” (MELIÁ, 2003, p. 240)
Comenta Clastres que “... ao se fazer de Tupã um equivalente de Deus, foi-lhe atribuído um significado que, sem dúvida não possuía.” (CLASTRES, 1975, p. 32) E prossegue: “Tupã praticamente não aparece no grande mito tupinambá da origem, ... Nem criador do mundo, nem transformador ou herói cultural: nenhum feito, gesta ou intervenção lhe são expressamente atribuídos.” (CLASTRES, 1975, p. 33) “Entre os Mbyá-guarani, tupã não estaria senão em um quinto lugar em ordem de importância” (MELIÁ, 2003, p. 28. In: CADOGAN)
Para o povo Tupi-guarani de então, Tupã é essa figura sem expressão como divindade da criação do mundo. Ele aparece, isto sim, associado à destruição, sempre relacionado à chuva, ao trovão e ao raio e por isso associado aos incêndios e aos dilúvios.
Para o Guarani atual, contudo, Tupã assume importância por estar relacionado à destruição da terra. E a visão da destruição da terra é central no pensamento do guarani atual visto que pelas suas crenças, a terra será destruída, por ser imperfeita, assim como já fora destruída a primeira terra mitológica. Porém, frisamos, essa é uma referência dos guarani da atualidade e não confirmam-se essas informações com os guarani do período de início da catequização.
Não se sabe, pois, por que motivos Tupã foi escolhido pelos jesuítas como sinônimo de Deus. Poderia ter sido para distanciar-se da divindade suprema, Nhamandú, e com isto não se reafirmariam as crenças “pagãs”. Pode ter ocorrido pelo desconhecimento dessa complexa estruturação da religiosidade indígena. Pode ser pelo fato de que os padres observavam o medo imprimido aos índios pelos trovões e tempestades, ou seja, Tupã, aquele que traz o prenúncio da destruição. Por fim, pelo menos no caso dos guarani, pode-se traçar uma relação de Tupã com o seu grande mito, pois “a busca da Terra Sem Mal está essencialmente vinculada à convicção de que a Terra será, mais uma vez, destruída”. (CLASTRES, 1975, p. 36)
A Terra Sem Mal
“A Terra sem Mal é esse lugar privilegiado, indestrutível, em que a terra produz por si mesma os seus frutos e não há mortes.” (CLASTRES, 1975, p. 38)
Encontram-se entre os diversos grupos tupi-guarani alguns sinônimos ou explicações da Terra Sem Mal: campo onde há muitas figueiras; atrás das montanhas; depois do grande rio; morada dos ancestrais; e outras denominações que atribuem à Terra Sem Mal a possibilidade de uma vida de plenitude, onde não é necessário trabalhar, as flechas caçam sozinhas e onde tudo é permitido. Seria de esperar que os religiosos católicos, assim que tomassem contato com a ideia da Terra Sem Mal a relacionassem com o Paraíso cristão, o que em nenhum momento aconteceu. Pode-se supor algumas conjecturas sobre o motivo disso não ter ocorrido. Talvez por tratar-se de um pensamento pagão, visto que, na Terra Sem Mal, tudo é permitido; ou porque, pela crença de alguns grupos indígenas, este é o lugar de apenas alguns, dos melhores; pode ser pela afirmação de que para ir à Terra Sem Mal, não é necessário morrer, pois passa-se para lá de corpo e alma, o que contraria a crença cristã de morte e ressurreição.
Outro aspecto a ser considerado, para a não adoção do mito da Terra Sem Mal como possível paraíso cristão, pode ser devido ao fato desse mito ser sempre evocado pelos xamãs. E é justamente contra os xamãs que os padres vão conflitar severamente na conversão dos índios. “Nóbrega, Montoya, Lozano, Yves d’Evreux... todos, com bela unanimidade, denunciaram os xamãs como seus piores inimigos e inimigos ainda mais formidáveis por que neles reconheciam – da mesma forma que os índios – um poder obscuro, mas muito real: em suma, eram os autênticos sequazes de Satanás. Toda a narrativa da ‘Conquista Espiritual’ de Montoya é a de uma constante luta de Deus contra Satanás.” (CLASTRES, 1975, p. 43)
E foi dos xamãs que os padres encontraram os mais sérios obstáculos à cristianização: “Esses pajés que ocupam entre os selvagens a posição de mediadores entre os espíritos e o resto do povo, são os que têm maior autoridade, obtida pelas suas fraudes, sutilezas e abusos e com mais força detiveram essa gente sob o remo do Inimigo da Salvação...” afirma Yves d’Évreux. (CLASTRES, 1975, p. 43)
“As aldeias tupis e guaranis eram compostas de várias casas coletivas (geralmente quatro, às vezes oito) dispostas em volta de um espaço central. De acordo com Yves d’Evreux, duas pessoas detinham o poder em cada aldeia: um mburuvicha (= morubixaba, chefe) e um pagyuaçu (= grande xamã). Estes grandes xamãs eram os que recebiam o título de caraí (pronunciar caraí; grava-se também caraíva, ou caraíba)”. (CLASTRES, 1975, p. 44 e 45)
Os xamãs eram divididos em três ou quatro categorias, fato atestado por várias pessoas que conviveram com os índios, como: Nimuendajú, Yves, Lozano, Montoya. Essa hierarquia devia-se à atuação de cada um, no plano geográfico, (atuação local ou em várias aldeias) e pela função (que poderia ser a de curandeiro ou de profeta). Os profetas detinham elevado prestígio. Eram chamados de caraí e alcançavam uma larga atuação geográfica.
Os caraís consideravam-se homens deuses e assim eram vistos pelos índios. Era-lhes atribuído poder sobrenatural, como secar rios ou provocar inundações. “Os caraís viviam retirados, afastados das aldeias, e nunca residiam com os demais ....[demonstram] gravidade exterior; e falam pouco, amando a solidão, e evitam o mais que podem as companhias.” (CLASTRES, 1975, p. 49) Dentre os assuntos preferidos dos caraís está a pregação sobre a Terra Sem Mal. Costumavam ir de aldeia em aldeia para fazer os seus discursos sempre proferidos ao amanhecer. Eram eloquentes. E os padres logo perceberam essas qualidades e também eles passaram a pregar com eloquência ao nascer do sol.
Pois bem, é da Terra sem Mal que falam os caraís. “A terra em que tudo é produto da abundância sem que seja necessário trabalhar, onde se goza de perpétua juventude, etc. – é o advento dela que prometem. São eles os fiadores de que ela é possível aqui e agora, pois podem comprometer-se a conduzir os outros até lá. Sem dúvida esse texto não trata de migração: não se incita as pessoas a deixarem as suas aldeias e pôr-se a caminho da Terra Sem Mal.” (CLASTRES, 1975, p. 59)
Os caraís anunciam, pois, que conhecem as regras para se chegar à Terra Sem Mal. Parece estarem referindo-se não a um lugar geográfico, mas um lugar para onde se pode passar quando são osbervadas as regras que eles anunciam. O saber dos profetas consiste em possuir a chave desse novo lugar: eles conhecem o caminho para a Terra sem Mal. Para uns é um caminho espiritual. Contudo, são conhecidas diversas migrações feitas por milhares de pessoas que perecorreram centenas de quilômetros tendo como único objetivo chegar à Terra Sem Mal.
NOTAS:
1 Província do Paraguai – Região que abrangia, nos séculos XVII e XVIII, o sul atual do Paraguai, norte da Argentina, regiões do sul do Brasil, especiamente do Estado do Rio Grande do Sul e o Uruguai. Foi criada em 1607 pela, igreja católica e nela predominou a atividade religiosa da cia. de Jesus, com índios Guarani. Formaram cidadas nas quais chegaram a viver cem mil pessoas.
2 Traduções do espanhol do autor do texto.
Texto de: Jerson Fontana
Fevereiro/2014
Fevereiro/2014
BIBLIOGRAFIA:
CADOGAN, Léon. Ayvu Rapyta – Textos Míticos de los Mbyá-Guarani del Guairá, CEADUC – CEPAG 1997, Asuncuión.
CLASTRES, Hélène. Terra Sem Mal. Corumbiara; Editora Tapé, 2007. (original em Francês: “La Terre Sans Mal”, EditionsduSeuil, 1975. Tradução: Renato Janine Ribeiro)
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Migrações tupi em busca da Terra Sem Mal e resistência
Várias migrações tupi-guarani ocorridas entre os séculos XVI ao XX foram motivadas pelo mito da Terra sem Mal. E esses deslocamentos de grandes contingentes humanos devem ter ocorrido também antes da chegada dos primeiros portugueses. Porém, não há informações sobre migrações em tal período.
“A Terra Sem Mal, [...] foi o núcleo a volta do qual gravitava o pensamento religioso dos tupis-guaranis; a vontade de chegar a ela governou suas práticas [... e foi] nascida do xamanismo, que viria a isolar uma categoria especial de xamãs: os caraís, os homens-deuses cuja razão de ser era essencialmente promover o advento da Terra sem Mal. Sua atividade, além de discorrer sobre as maravilhas da terra eterna: propunha-se a conduzir os índios para ela. Sabe-se que desde a conquista até o começo deste século [XX], numerosas migrações efetuadas pelas tribos de tupis e guaranis tinham com único objetivo a procura da Terra sem Mal”. (CLASTRES, 1975. p. 70)
“A Terra Sem Mal, [...] foi o núcleo a volta do qual gravitava o pensamento religioso dos tupis-guaranis; a vontade de chegar a ela governou suas práticas [... e foi] nascida do xamanismo, que viria a isolar uma categoria especial de xamãs: os caraís, os homens-deuses cuja razão de ser era essencialmente promover o advento da Terra sem Mal. Sua atividade, além de discorrer sobre as maravilhas da terra eterna: propunha-se a conduzir os índios para ela. Sabe-se que desde a conquista até o começo deste século [XX], numerosas migrações efetuadas pelas tribos de tupis e guaranis tinham com único objetivo a procura da Terra sem Mal”. (CLASTRES, 1975. p. 70)
Sobre as migrações dos tupi para a Terra Sem Mal, “A mais antiga que conhecemos deu-se por volta de 1539, impelindo milhares de tupis do Brasil até o Peru. Embora aproximativa, essa primeira data é a mais provável, pois o conjunto das fontes que mencionam essa migração concorda em atribuir-lhe uma duração de dez anos. E sabe-se que se encerrou em 1549, data em que os índios, chegados ao Perú, foram capturados pelos habitantes da cidade de Chachapoyas; estavam reduzidos a trezentos [dos doze mil que haviam partido.]” (CLASTRES, 1971. p. 76)
Diversas migrações são relatadas ainda nos séculos XVI e XVII. Merece destaque a que ocorre no início do século XVI, quando, devido a três migrações os tupinambás passam a ocupar o Maranhão.
Outra migração se produziu em 1605. Partiu de Pernambuco e conduzia dez mil índios.“Pelos caminhos essa grande multidão só se alimentava das raízes, frutos, peixe, animais e da farinha que levavam”. (CLASTRES, 1975. p. 82) Os profetas encorajavam os índios a não trabalhar, pois que obteriam o necessário por força das divindade. Fomes e doenças dizimaram-nos com frequência. Também tinham que combater os inimigos cujo território atravessavam. O profeta foi morto em um combate e os sobreviventes regressaram a Pernambuco. Quatro anos mais tarde esses índios seguiram outro caraí no mesmo itinerário. “Todas as migrações religiosas conheceram desenlaces catastróficos.” (CLASTRES, 1975. p. 83)
Com os guarani, contudo, as coisas ocorrem de modo diverso do que acontecera com o povo tupi. Apesar das semelhanças culturais, incluindo-se aí a religião, não são conhecidas migrações de relevância orientadas para a Terra Sem Mal, pelo menos até o advento do século XIX. Neste período sabe-se com certeza de migrações “das tribos do sul de Mato Grosso: oguauíva, tañiguá e apapocuva.” (CLASTRES, 1975. p. 87).
Talvez não seja falta de informação. Há a probabilidade de que não tenham ocorrido migrações em busca da Terra Sem Mal. Hélène, em sua pesquisa afirma que: “No século XVI, a atividade dos caraís [guarani] é muito diferente e não é profética em nada: com efeito, foi muitas vezes sob sua liderança que se organizou, desde o começo, a resistência à colonização espanhola. Não prometiam aos índios imortalidade e juventude perpétua – mas propunham libertar da encomienda1 as aldeias que já haviam sido submetidas a ela. Seu projeto não era a procura de uma outra terra, mas a reconquista da terra de que começavam a se ver espoliados e, se empolgavam numerosas aldeias com sua liderança, não era para peregrinações intermináveis, mas em expedições guerreiras contra as pequenas cidades fortificadas que começavam a se multiplicar, ocupando cada vez mais seu território. Não há nada em comum entre isso e a procura da Terra Sem Mal.” (CLASTRES, 1975. p. 88)
Uma releitura atenta da conquista do território Paraguaio ajuda a esclarecer esses aspectos relacionados à beligerância indígena em detrimento de migrações messiânicas. Um episódio relevante ocorre em 1579 tendo à frente Oberá. Quando várias aldeias já estavam submetidas à encomienda e outras na iminência de serem dominadas, o guarani Oberá, “grande mago e chefe de aldeia das cercanias de Assunção” (CLASTRES, 1975. p. 90) lidera uma insurreição apoiada por vários líderes indígenas.
Internamente, entre os próprios Guarani, são conhecidos eventos de vingança que levam à morte de líderes, à destruição completa de várias aldeias e ao massacre de toda a sua população. No que tange ao confronto entre índios e espanhóis, merece destaque um levante militar do cacique guarani Oberá e seus aliados que logo passam a ser perseguido por militares ibéricos. No episódio final desta revolta os espanhóis, auxiliados por dissidentes do grupo de Oberá, atacam a fortificação dos rebelados onde estavam cerca de três mil guerreiros. Garay, o chefe militar dos espanhol, atacou-os violentamente. Oberá conseguiu fugir e ninguém ouviu mais falar dele. Os outros caciques não tiveram autoridade suficiente para fazerem seus soldados continuarem a batalha. “Muitos foram mortos, trezentos aprisionados, alguns conseguiram escapar. Entre os prisioneiros estava um dos caciques que haviam acompanhado Oberá” (CLASTRES, 1975. p. 97). Por meio dele, Garay ficou sabendo que o líder indígena fugitivo havia organizado sua rebelião por toda a região. Por isso, mandou prender aqueles que estavam tentando sublevar outras aldeias e reestabeleceu a ordem imperial no Paraguai.
Havia também entre os guarani, neste início de catequização no século XVII, disputas de poder entre caciques e pajés. “A história de Guiravera talvez nos esclareça ainda melhor o estado de conflito que opunha chefes e profetas nas sociedades guaranis. Se desenrola numa região intacta do Guairá e por isso as aldeias guaranis não estavam submetidas à encomienda". (CLASTRES, 1975. p. 97)
O relato é do padre Montoya nos primórdios da criação da província Jesuítica do Paraguai, quando apenas cinco reduções haviam sido fundadas. O jesuíta descreve que, ao iniciar a conquista da região dominada por Taiobá, nome do cacique principal que governava várias aldeias, conquistou um primeiro aldeamento com algumas dezenas de índios. Depois, ao tentar entrar no território mais povoado foi repelido por “oito grandes feiticeiros, [...] que pareciam vir acolhê-lo”. (CLASTRES, 1975. p. 98) Montoya escapou por pouco. Meses depois, empreendeu nova expedição, mas outro ataque ocorreu, promovido pelos mesmos “feiticeiros”. Percebe-se pelos relatos que Taiobá, o cacique, não era hostil ao padre, tendo inclusive aceitado a religião católica, enquanto os xamãs defendiam com armas as aldeias das quais eles eram líderes religiosos e Taiobá o cacique.
Ao receberem informações sobre os conflitos, militares espanhóis decidiram tomar a região com armas e nela entraram com setenta soldados bem armados e quinhentos encomienderos, mas foram repelidos e depois de vários dias de combate apenas conseguiram escapar com vida.
Montoya partiu então pela quarta vez, acompanhado apenas de trinta índios. Fez construir uma enorme paliçada e uma igreja e aguardou. “Montoya adotou o hábito de ficar diante da entrada do forte, para falar à gente de Guiravera e convencê-los das suas intenções pacíficas.” (CLASTRES, 1975. p. 100) Distribuindo presentes e fazendo seus discursos conquistou simpatia. Quando retornou para a missão um mil e quinhentas famílias o acompanhavam.
A partir dessa conquista o poder desses novos profetas, os padres, aumentava entre os guarani, especialmente pelo fato de que eles resolviam dois assuntos essenciais para esses indígenas: do lado concreto da sobrevivência deles libertava-os da encomienda; do lado espiritual anunciava que a Terra sem Mal era acessível, mas claro, após a morte.
Conforme é possível deduzir, os guarani de então estavam empenhados na proteção de suas aldeias e não em migrações em busca da Terra Sem Mal.
Migrações guaranis para a Terra sem Mal e a sobrevivência do mito
Vários grupos guaranis sempre se recusaram a incorporar-se às reduções jesuíticas e é possível deduzir-se que eles tivessem caraís por dirigentes. Não se sabe. Em todo o caso permanecem bem vivas entre eles as tradições religiosas (que não raro são preservadas pelos xamãs/caraís), como testemunham as grandes migrações que alguns iriam empreender. A partir do começo do século XIX, várias tribos ao sul de Mato Grosso puseram-se à procura da Terra sem Mal. Nessa época, vários profetas haviam passado a percorrer as aldeias: anunciavam a iminente destruição da Terra e proclamavam que a única maneira de escapar do cataclisma era partir para a Terra sem Mal, situada no centro da Terra, segundo uma tradição, a leste, do outro lado dos mares, de acordo com outras.
Conduzidos por seu pajé, Nhanderiquini, os tanhiguás foram os primeiros a iniciar a marcha para leste, por volta de 1820. Morreu seu guia e seu sucessor prosseguiu a migração. Quando chegaram próximo à São Paulo foram capturados pelos seus habitantes e reduzidos à escravidão. Fugiram e chegaram à vista do oceano, na serra de Itapetininga, e decidiram ali instalar-se para se consagrarem aos exercícios: danças, cantos, jejuns, etc. que iam capacitá-los a atravessar as águas até a Terra sem Mal. O governo brasileiro enviou uma expedição contra eles, houve luta e um acordo com a concessão de terras em Itariri. Nesse período estavam reduzidos a trezentas pessoas.
Em 1830, outro grupo de guaranis, os oguauívas, abandonou seu território seguindo a pegada dos seus predecessores e conseguiram chegar à região de Itapetininga – São Paulo, onde o fazendeiro Barão de Antonina, já em 1845, cedeu terras para o governo criar uma missão. Em 1870, os guaranis-apapocuvas também migraram para oriente, mas foram impedidos pelas autoridades do governo brasileiro de alcançar o litoral. Foram maltratados pelas autoridades, massacrados pelos colhedores de erva-mate, dizimados pelas epidemias de rubéola. Foram praticamente aniquilados. (CLASTRES, 1975, p. 103 e 104)
“O breve relato dessas migrações dos guaranis para a Terra sem Mal basta para mostrar, também aí, a originalidade de uma tradição religiosa que nem os maiores abalos conseguiram enfraquecer.” (CLASTRES, 1975, p. 105).
Porém, justamente com as migrações dos apapocuvas chegam ao fim os vastos movimentos coletivos para a Terra sem Mal. A violência que encontraram mostra claramente que fenômenos de amplitude comparável não são mais possíveis hoje em dia. Basta citar que algumas tentativas de migrações em massa se produziram no inicio do século XX, mas foram detidos pelas autoridades paraguaias.
Isso provocou um deslocamento no comportamento guarani. Os profetas deixaram de ser homens da resistência com armas e passaram a ser orientadores de um novo modo de vivenciar o mito da Terra Sem Mal que ainda figura como o tema símbolo de seus ritos que “são, portanto, governados pela crença de que o homem [...] pode ascender à imortalidade sem passar pela prova da morte. Para eles, a gesta de heróis míticos, que precisaram cumprir um prazo de vida terrena antes de obter o direito de atingir a Terra sem Mal, vale como antecipação do seu destino possível.” (CLASTRES, 1975, p.117)
NOTAS:
1 A Encomienda e a Mita foram dois modos de exploração do trabalho indígena aplicados na América com os auspícios da Coroa Espanhola. Eram regimes semelhantes à escravidão. Para aplicar a encomienda, os proprietários de terras recebiam a autorização da Coroa e tornavam-se encomienderos. Ficavam então com um certo número de famílias indígenas que trabalhariam, sem direito a pagamentos. Em troca o encomiendero lhe daria educação cristã.
Texto de: Jerson Fontana
Fevereiro/2014
Fevereiro/2014
BIBLIOGRAFIA:
CADOGAN, Léon. Ayvu Rapyta – Textos Míticos de los Mbyá-Guarani del Guairá, CEADUC – CEPAG 1997, Asuncuión.
CLASTRES, Hélène. Terra Sem Mal. Corumbiara; Editora Tapé, 2007. (original em Francês: “La Terre Sans Mal”, EditionsduSeuil, 1975. Tradução: Renato Janine Ribeiro)
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